sábado, 30 de abril de 2011

Claudio Ulpiano

Aula de 24/01/1996
Corpo orgânico e corpo expressivo

(…)
[E eu vou] passar agora para um canto de que eu não falei no Olivier Messiaen, chamado CANTO TERRITORIALIZANTE. Naquele momento, eu falei em dois cantos: no canto amoroso – canto de sedução, canto da primavera – que eu relacionei à representação orgânica; e no canto gratuito – que eu disse não ser, de maneira nenhuma, um canto orgânico. Seria…
(Não há nenhuma dificuldade em fazer a oposição que eu vou fazer agora:)

Eu vou colocar aquele canto – que eu chamei de canto gratuito – literalmente como um canto estético; e opor, então, ESTÉTICA e ORGANISMO. Ou seja: quando o pássaro faz o canto para o crepúsculo, ele tem como objetivo a BELEZA; o objetivo dele é a ARTE. Arte, no sentido de que ele não tem nenhum objetivo de colocar um órgão ou [ efetuar ] uma função de órgão: ele não busca a reprodução, ele não quer prazeres individuais, ele não visa a nada disso; pelo contrário – porque no canto gratuito o pássaro está correndo um risco de morte assustador, pois ele se entrega inteiramente ao crepúsculo. Então, ele abandona (atenção para essa categoria: eu estou misturando categorias, eu vou passar inclusive uma categoria do Nietzsche) a prática conservativa.
A prática conservativa [corresponde ao] que se chama CORPO REATIVO – que é um corpo inteiramente voltado para a conservação. É isso que se dá no canto primaveril, um canto voltado inteiramente para a conservação – e foi inclusive por isso que eu usei um conceito de biologia molecular… Eu disse que quando o pássaro está exercendo esse canto orgânico, esse canto primaveril, ele está passando um sonho da vida: que é a replicação; um sonho da vida: que é a reprodução – a vida teria esse sonho! O que implica em dizer que o canto gratuito faria uma deriva no que eu chamei de corpo reativo, no que eu chamei de corpo conservativo – que é como se o corpo abandonasse o governo do organismo e se arriscasse nessa região do estético, na região da arte. Então, a partir disso, eu acho que eu posso colocar – e nada me impede de fazer isso! – que o mesmo pássaro, que eu chamei de grive musicienne, (eu vou usar, um pouco diferencialmente, o Leibniz) o mesmo pássaro teria em seu corpo duas forças: uma força de conservação e uma força selvagem, violenta, conquistadora – cujo único objetivo seria a criação, a invenção e a produção. É como se fosse uma auto - poiesis: um poder auto criativo que passaria naquele corpo.
A partir daí, eu aplico [essas categorias ] a qualquer corpo: qualquer corpo vivo teria nele essas duas forças – uma força orgânica conservativa e uma força que por enquanto (eu não vou usar Nietzsche) eu vou chamar de FORÇA ESTÉTICA – voltada exclusivamente para a produção de alguma coisa: no caso do pássaro, para a produção dos cantos – cantos para o crepúsculo. (Tá?)
Agora, o terceiro canto – o canto que eu não enunciei: um canto que está inteiramente ligado a todos os animais, incluindo o homem. A todos os animais incluindo o homem, no sentido de que a ciência etológica, que eu chamei de biologia do comportamento, trabalha com pássaros, com moléculas e também com o homem. Então, existem determinados animais que são territorializantes; e outros, que não são territorializantes. Quer dizer: alguns animais que produzem território; e outros que não produzem território. Produzir territórios…
O território não tem que obedecer à geografia humana: o território do animal pode ser um território no ar, pode não ser nada na terra, pode ser um território temporal… Por exemplo, dizem que o gato ocupa um determinado território durante umas duas horas e depois o abandona. Outro gato vai ocupar as outras duas horas. Então, o território de um animal não é recoberto pelo modelo geográfico humano.
Vamos chamar o território animal de PAISAGEM. É uma paisagem onde o animal, que é territorializante, vai produzir marcas; marcas que limitem o território dele: ele dá limites ao território! Quando, por exemplo, o lobo marca um território (vocês podem usar assinar), quando ele assina o seu território, o lobo marca ou assina esse território com fezes e urina. Mas o pássaro, ao marcar seu território, ele faz isso com o canto: é cantando que ele marca território. Então, – e aqui está o momento chave -, na hora em que o pássaro marca o seu território, ele não está fazendo uma prática orgânica, não é uma prática orgânica. A prática orgânica no pássaro (ou mesmo em todos os animais territorializados) aparece depois de constituído o território dele. Ou seja, eu agora vou mudar de nomenclatura e dizer que os pássaros – ou qualquer ser vivo – têm dois tipos de corpo: um CORPO ORGÂNICO e um CORPO EXPRESSIVO. Então, eu passei a usar a categoria de expressivo e vou dizer que, quando um pássaro vai marcar o seu território, o corpo dominante nele, nesse momento, é o corpo expressivo.
Esse corpo expressivo ainda não tem função orgânica: o pássaro marca o território para, a partir dele, de seu território marcado, começar a exercer suas funções orgânicas.
(Nós aqui vamos usar uma estratégia, para vocês entenderem bem).
Segundo o que eu estou dizendo, portanto, só há canto amoroso, o canto primaveril, depois do território constituído.
Assim, o pássaro primeiro constrói o território dele – e quem constrói esse território não é o corpo orgânico; quem constrói o território é o corpo expressivo: o mesmo corpo que aparece no canto para o crepúsculo. O corpo que aparece no crepúsculo é o mesmo corpo que produz um território.
Então, o que me importa aqui, até esse momento, é o fato de um corpo não se definir ou não se resumir ao organismo: um corpo não se resume ao organismo. O organismo não é equivalente a corpo vivo. Corpo vivo e organismo não se equivalem: o corpo vivo implica também o que eu chamei de FORÇAS EXPRESSIVAS. Então (a tenção para o que eu vou dizer), essas forças expressivas produziriam o território. Eu vou chamar essas forças expressivas de territorializantes; e dizer que o corpo orgânico apareceria a partir do território produzido por essas forças expressivas. O corpo orgânico é um prolongamento do corpo expressivo: ele prolonga o corpo expressivo. A partir daí, nada me impede de dizer que o corpo expressivo é genético em relação ao corpo orgânico – ele é a gênese do corpo orgânico. Até que…
Se eu estiver me excedendo um pouco aqui… Não, não estou me excedendo; mas se estivesse, não teria importância, porque é esse o uso que estou fazendo, para nós penetrarmos no campo transcendental e no plano de imanência.
Então, pela explicação que eu dei, um corpo vivo teria duas forças: uma força orgânica e uma força expressiva. A força orgânica só emergiria a partir de um território produzido – produzido pela força expressiva. Então, se a força orgânica só emerge a partir de um território produzido, significa que a força expressiva – que é a força territorializante – é uma força genética: é a gênese do organismo; a partir de onde o organismo aparece.
- O que nos importa aqui? O que nos importa aqui é a idéia de gênese; e a idéia de representação orgânica como produto de uma gênese. O que eu estou colocando pra vocês, sempre da maneira mais cadenciada possível, é que atrás de uma representação orgânica, atrás do organismo existe a força genética desse organismo. Essa força genética chama-se força expressiva. (Certo?)
E agora, quando você tem o organismo, ou seja, os cantos chamados cantos primaveris, os cantos amorosos, você tem um organismo em pleno funcionamento; um organismo com as suas funções – em pleno funcionamento! Então, quando você tem esse organismo territorializado, dentro de um território, o pássaro, por exemplo, que está na sua representação orgânica, na prática do canto amoroso, do canto da primavera, eu vou passar a chamá-lo simplesmente de INDIVÍDUO. Ou seja, eu estou dizendo que os seres vivos se constituem como indivíduos: todos os seres vivos são individuados.
Por exemplo, eu sou um indivíduo, ela é um indivíduo, ele é um indivíduo, uma barata que aparecer aqui é um indivíduo, uma mosca que aparecer aqui é um indivíduo…
A força plástica (eu já tinha colocado isso)… a força plástica constitui indivíduos. A força orgânica constitui indivíduos. Então, sempre que você encontrar um ser vivo, você estará diante de um indivíduo – você estará nitidamente diante de um indivíduo.
Por exemplo, aparece uma pulga, e a gente mata a pulga: matou um indivíduo. A gente mata um mosquito: matou um indivíduo.
O vivo é o indivíduo. Se você sai do vivo e vai procurar os indivíduos no mundo físico – é mais complicado.
- Por exemplo, o Pão de Açúcar. O Pão de Açúcar seria um indivíduo?
Essa é uma questão muito difícil, porque, inclusive, não se consegue dizer onde estão os limites do Pão de Açúcar; e o vivo tem seus limites precisos. Então, o indivíduo é a marca do vivo: todo vivo é individuado.
(Tem café pra mim?)
O que eu estou colocando nesta aula – de modo um pouco forçado – é que indivíduo equivale à representação orgânica – eu estou constituindo uma equivalência entre organismo e indivíduo. E não é muito forçado, porque, se eu usar as forças plásticas do Leibniz, é exatamente isso; ou seja, – o organismo é um indivíduo.
Agora, a filosofia e, junto com ela, as ciências sempre se empenharam em compreender o que é o indivíduo. Durante todos esses séculos, com pequenos cortes – que neste instante não importam – a ciência e a filosofia têm feito um empenho para entender o que é o indivíduo. (Isso daqui vai nos levar pra [ determinados ] caminhos, que vão surgir… lá pela oitava a décima aulas). Então, quando vocês encontram uma ciência – a ciência é necessariamente empenhada em dar conta dos indivíduos que existem na realidade.
Mas eu coloquei a diferença do canto expressivo para o canto orgânico e disse que o canto expressivo é um canto territorializante. A partir de então, eu estou dizendo que o canto expressivo ainda não é a postura da individuação: o canto expressivo é anterior ao indivíduo orgânico. Esse canto expressivo, então, passaria a ser a gênese do canto orgânico, a gênese da representação orgânica. Ou melhor, e isso é final – todo vivo é um indivíduo. Todo vivo é um indivíduo, todo vivo é orgânico. Então, quando eu digo: “ todo vivo é um indivíduo, todo vivo é orgânico ”, eu fiz uma equivalência perigosíssima – porque eu disse que a vida equivale a indivíduo e a organismo – mas é FALSO: porque a vida não equivale a indivíduo e a organismo – porque indivíduo e organismo pressupõem uma gênese – e a gênese do indivíduo, a gênese do organismo, chama-se SINGULARIDADE.
Então, eu estou dizendo pra vocês que, quando nós pensamos a vida, quando nós formos pensar a vida, o que nos aparece para a experimentação, o que aparece no mundo empírico, pra se experimentar, pra se observar, pra você fazer seus cálculos e sua teoria, são os indivíduos e o organismo. Mas o indivíduo e o organismo não se equivalem à vida. Não há equivalência entre o indivíduo – que é igual a organismo – e vida. Para se pensar a vida, tem-se que incluir a gênese do indivíduo. E quando você abandona o indivíduo e parte para a prática genética do indivíduo, encontra-se alguma coisa que eu vou passar a chamar de singularidade.
Então, no momento em que eu falo que existe alguma coisa no mundo da vida que não é o organismo, ou seja, que a vida não se equivale a organismo, não é sinônimo de organismo – é que existe alguma coisa que é pré -individual, alguma coisa que é pré -orgânica – que eu estou chamando de singularidade – e esta coisa é a gênese da vida. Ou seja, a vida, para se compreender a vida, tem-se que compreender os seus elementos genéticos – elementos esses que se chamam singularidades.
(Então, vamos voltar, vamos voltar. Eu vou repetir o que estou dizendo).
Eu pego um cientista, vamos ver, um biólogo, eu pego um biólogo e digo para ele fazer um estudo sobre a vida. O que esse biólogo vai encontrar? Vai encontrar o organismo - ele só vai encontrar indivíduos. Todo o trabalho dele vai ser em cima de indivíduos, porque o indivíduo é o vivo constituído. O vivo, quando ele se constitui, ele é o indivíduo, ele é o indivíduo.
Aluna: Moléculas, células?…
Cláudio: Seria… seriam indivíduos. Tudo isso é indivíduo: moléculas, células, vírus, átomo... isso tudo é indivíduo. Tudo o que você encontra na sua experimentação – não importa, no caso do átomo, que essa experimentação não possa ser observada a olho nu – é indivíduo. E o que eu estou colocando pra vocês é a existência de uma gênese do indivíduo. Essa gênese – aqui é um momento grave – essa gênese não é individual. Ou seja, aquilo que produz o orgânico, aquilo que produz o vivo, aquilo que produz o indivíduo vivo não é individual – chama-se singularidade. É um momento difícil, mas aqui nós já temos uma marcação, uma assinatura que vai dar uma orientação pra vocês. A orientação é que essa singularidade, essa gênese da vida, chama-se CAMPO TRANSCENDENTAL. E o indivíduo – o orgânico enquanto tal – pertence ao que estou chamando de FORMA EMPÍRICA.
Então, quando você encontra um cientista, um observador do mundo, o que esse observador faz? Ele observa indivíduos – porque a nossa sensibilidade só pode apreender os indivíduos – a nossa sensibilidade não apreende a singularidade.
- Por que a sensibilidade não apreende a singularidade? Porque a singularidade só pode ser pensada. Só pode ser pensada. E esse aqui é um momento gravíssimo – porque eu estou constituindo pra vocês a idéia de que existem DUAS REALIDADES: uma realidade clara, fácil de entender (ainda que seja clara e fácil de entender eu vou dar uma orientação pra vocês entenderem melhor ainda) – que se chama o indivíduo; e a outra realidade – que se chama singularidade. E aqui aparece alguma coisa como se fosse uma torção do pensamento: a singularidade é tão real quanto o indivíduo; mas ela não pertence ao mundo empírico – logo, ela não pode ser observada pela nossa sensibilidade; a singularidade é aquilo que pode ser pensada.
(Então, eu vou deixar isso de lado; e vou voltar, procurando aumentar a potência de compreensão dessa questão pra vocês).
Eu disse que o indivíduo é aquilo que ocupa o que eu chamei de FORMA EMPÍRICA; e a forma empírica é tudo aquilo que nós podemos observar e experimentar. Por exemplo, quando eu produzo um enunciado, esse enunciado é um individuo. Quando eu vejo uma molécula, quando entro em contato com uma casa, quando entro em contato com um copo… Qualquer coisa que pertence à forma empírica é chamada de indivíduo. Muito bem! Essa tese de que a forma empírica é preenchida pelos indivíduos, ou seja, de que os indivíduos são aquilo que existe na realidade… E isso é a coisa mais fácil de vocês entenderem… Olhem para esta sala: tem uma série de indivíduos homens, tem uma série de indivíduos cadeiras, tem um indivíduo mesa, tem dois indivíduos ventiladores, tem um indivíduo teto… – então, a realidade é constituída de indivíduos. E a questão do indivíduo fica muito clara, quando se passa para a vida, porque os seres vivos são precisamente demarcados. O ser vivo é precisamente demarcado – porque a vida é uma escultora, a vida é apaixonada pela variação das formas: ela é capaz de produzir uma aranha, um cavalo, uma vaca, uma flor... Então, quando a vida produz essas formas, essas formas (que a vida produz) chamam-se indivíduos. Então, o mundo da forma empírica é o mundo das formas – onde tudo tem forma. Aí, vocês podem me perguntar: tudo? Tudo? Tudo? A música tem uma forma? A sonata, a sinfonia, seja lá o que for… tudo tem uma forma!
Al: A alma tem forma?
Cl: A alma… É muito fácil responder isso: ela pertence ao mundo empírico? Se pertencer, não interessa: tudo que pertence ao mundo físico tem uma forma. O Nietzsche chamava isso de apolíneo – o MUNDO APOLÍNEO: é o mundo das formas. (—??—). Tudo o que pertence ao que eu chamei de forma empírica é dotado de uma forma – não importa qual seja essa forma.
Agora, no século XIV, (eu vou usar o século XIV como uma estratégia de orientação pra vocês!), os pensadores do século XIV, sobretudo a chamada “ escola tomista” (de São Tomás de Aquino) afirmavam que a realidade – logo, a forma empírica – era constituída de duas realidades: uma, o indivíduo; e a outra, eles chamavam de UNIVERSAL. Então, para eles, a realidade era constituída de dois elementos: o individual e o universal. Essa palavra universal complica um pouco. Mas…
- O que quer dizer universal? Universal quer dizer a espécie à qual o indivíduo pertence. O indivíduo humano, por exemplo, pertence à espécie homem, o indivíduo cachorro à espécie cachorro, o indivíduo ‘collie’ pertence à espécie cachorro… Então, para os pensadores do século XIV, a realidade era constituída de duas formas: a forma UNIVERSAL ou forma ESPECÍFICA; e a forma INDIVIDUAL.
O real, então, para eles era constituído por essas duas formas: a individual e a universal ou espécie. (Vocês entenderam isso?) Era constituído pelo indivíduo e pela espécie, pela forma. Por exemplo, qual é o nome de um livro de Darwin? Evolução das… espécies. Quer dizer, evolução do universal - é isso que ele está dizendo. Ele está dizendo que a espécie é uma realidade que evolui. Então, o Darwin está inscrito nessa postura de que a realidade é constituída de indivíduos e de espécies ou universais. (Certo?)
Agora, no século XIV, quando essa teoria está colocada, aparece um pensador chamado Guilherme de Ockham; e esse pensador vai desfazer essa noção – ele desfaz essa noção. Ele vai dizer o seguinte: a realidade (aqui é um momento chave), a realidade não é constituída de duas formas. (Quais seriam as duas formas? A individual e a universal). Ele vai dizer que o universal não é real – que o universal é MENTAL. O universal é mental. Vou dar um exemplo pra vocês. Então, o que o Ockham está dizendo é que a única coisa real é o individual – e que o universal é mental. Como é que a gente compreende isso? Por exemplo, você pega um pronome-adjetivo demonstrativo e um substantivo. Pega o substantivo cadeira e antepõe ao substantivo cadeira o pronome-adjetivo esta e diz – esta cadeira. Quando você diz isto, “ isto ” é uma palavra que indica uma realidade no mundo. Ou seja, quando eu digo esta cadeira, esta mesa, estes óculos, este boi, este cachorro, este mosquito... eu estou indicando realidades individuais - que existem no mundo. Ou seja, esta cadeira, esta mesa, este cachorro… todos esses três enunciados têm um referente: alguma coisa que existe para lá do próprio enunciado.
Mas quando eu digo: a cadeira, a mesa, a rosa, o copo, o rádio… para lá do enunciado o rádio, a cadeira, a mesa… não existe NADA. O que a escola do Guilherme de Ockham vai dizer é que os universais são apenas SIGNOS. Ou, para ficar mais fácil pra vocês, são meras palavras – flatus vocis... meras palavras. A mesa… atrás da mesa, para lá da mesa… tem alguma coisa? Nada! Ou seja, não existe nenhum objeto que corresponda ao enunciado ‘ a mesa ‘; mas existem objetos que correspondem ao enunciado ‘ esta mesa ‘. Então, ‘ esta mesa ‘ indica realidades individuais no mundo – e ‘ a mesa ‘ não indica nenhuma realidade. Se não indica nenhuma realidade – ‘ a mesa ‘ é um mero signo.
Esse é um momento belíssimo da história do pensamento – porque fica constituído o que se chama CAMPO ONTOLÓGICO. Campo ontológico quer dizer aquilo que existe – aquilo que existe é o indivíduo. Então, nesse momento, foi constituído o campo ontológico e nasceu o que se chama SEMIÓTICA.
Semiótica são palavras que não indicam nenhuma realidade; elas são puros signos.
Nesse momento, então, nascem dois campos: o ontológico – preenchido pelos indivíduos; e o semiótico – preenchido pelos universais. (Certo?).
Então, a semiótica nasceu no século XIV, na escola de Guilherme de Ockham – e o real ficou constituído de quantas coisas? O que é o real? O real passou a ser apenas o indivíduo: só os indivíduos são reais! E nesse século XIV, na linguagem de Guilherme de Ockham… (evidentemente em latim, não é?) o indivíduo é sinônimo de singular. Então, tanto faz você dizer singular, ou dizer indivíduo que você está dizendo a mesma coisa. Então, para ele, indivíduo e singular são a mesma coisa e se você diz: “o real, o empírico é constituído por indivíduos ou constituído por singularidades”, você diz a mesma coisa – e o universal passa a ser um objeto mental.
Depois, quando chega a linha de determinados pensadores que mais tarde eu vou explicar, vai haver uma separação ontológica entre individual e singularidade, entre indivíduo e singular. Essa linha vai dizer que o real não é constituído somente de indivíduos, é constituído de DUAS realidades: o indivíduo e o singular.
Enquanto, no século XIV, o singular era apenas um sinônimo de individual, e para algumas escolas o individual e o universal eram ambos reais, – Guilherme de Ockham desfaz o universal como realidade, coloca o universal ou a espécie como OBJETO MENTAL e dá o SINGULAR como sinônimo de INDIVIDUAL. Então, o que eu acabei de dizer, é que nós nunca encontraremos o universal aqui [no nosso mundo ]. Não existe universal, o universal é mental!
Determinadas escolas do século XX (eu vou dizer assim, para não complicar) vão fazer a separação do individual e do singular – e dizer que o real é ocupado por duas realidades: a realidade individual e a realidade singular. Então, nós teríamos duas realidades: uma individual (agora já fica mais claro para eu dizer), essa realidade individual chama-se forma empírica. Então, a forma empírica é preenchida somente por individuais e na hora em que há o desencontro – quando acaba a sinonímia e a equivalência de individual e singular – uma nova realidade passa a existir. Uma realidade, a forma empírica – preenchida pelos individuais; a outra realidade, chamada campo transcendental – preenchida pelos singulares ou...
- Eu disse pra vocês que os singulares seriam a gênese do individual? (Se alguma coisa é genética da outra, você pode chamar a coisa que é genética da outra de pré. Então o singular é o pré - individual. Então, o campo transcendental e a forma empírica passam a ser as duas realidades. Nós teríamos duas realidades: a que eu chamei de forma empírica, preenchida pelos individuais e a outra realidade, que eu chamei de campo transcendental, preenchida pelos…?
Als: pela singularidade, pelos singulares.
(Tá? Eu agora só vou passar por aqui!)
Há outro elemento em que vocês têm que se apoiar, antes de eu penetrar no estudo… é que os singulares são a gênese do individual. (Atenção:) A GÊNESE DO INDIVIDUAL.
- O que é o universal? O universal é um objeto mental. Esse objeto mental tem origem na forma empírica – o que implica em dizer que na forma empírica existem os indivíduos e os SUJEITOS. Então, na forma empírica existem duas coisas; aliás, uma só – porque o sujeito é um indivíduo.
Então, existem indivíduos e sujeitos: por exemplo, este copo é um indivíduo, eu sou um indivíduo, mas além de ser um indivíduo eu sou um…? (Als:) sujeito! (Muito simples… a definição de sujeito é simplérrima!) O sujeito é aquele que faz representações mentais. Então, o universal é uma…? (Als:) representação mental!
Então, a forma empírica é preenchida pelos indivíduos e pelos sujeitos (algum problema?). E o sujeito é aquele que faz representações mentais. Logo, o universal é uma…? (Als:) representação mental!
Muitos pensadores, quando se encontram com o singular, dizem: “Ah! O singular é também uma representação mental ”. Eu estou dizendo: Não! O singular não é uma representação mental – o singular é uma realidade tanto quanto a forma empírica é uma realidade; só que essa realidade chamada singular não tem as mesmas estruturas da realidade chamada forma empírica. Então, nós passamos a ter os objetos mentais, que pertencem ao sujeito. Esses objetos mentais são muito fáceis de se compreender: os nossos sonhos, os nossos delírios, as palavras universalizantes - que são o artigo definido mais um substantivo: o homem, a cadeira... Então, tudo que se passa na nossa subjetividade chama-se objeto mental. O que é o sonho? Um objeto mental. O que é o delírio? Um objeto mental. O que é a tristeza? Um objeto mental. (Certo?) Então, os objetos mentais e os indivíduos preenchem o que se chama forma empírica. Eles preenchem a forma empírica.
(E, agora, começa a ficar mais difícil. Começa a ficar mais difícil para se entender).
A singularidade não é nem individual nem mental - ela é real, mas aqui aparece… apareceram… Vamos voltar ao Guilherme de Ockham:
O que o Guilherme de Ockham fez de mais magnífico? Foi ter constituído um campo ontológico – que é o campo do indivíduo; e um campo semiótico – que é o campo do universal. Foi isso que ele fez.
Agora, quando nós chegamos aqui nós temos a singularidade. A singularidade não é um campo mental; ela é uma realidade tão real quanto o individual. Só que as estruturas do individual não são semelhantes às estruturas do singular, sobretudo porque o singular não tem estrutura. Eu disse pra vocês que a forma empírica, ou melhor, que o mundo empírico é constituído de indivíduos; e os indivíduos e os sujeitos são duas formas. Então, no universo, no que eu chamo de campo transcendental, – onde estão as singularidades -, não existem formas. Se o Nietzsche, por exemplo, estivesse aqui, como é que ele chamaria essas singularidades? Ele as chamaria de FORÇAS. (Posso usar diversos pensadores que vão pensar dessa maneira). Então, essas singularidades…
(Eu vou repetir, pra vocês compreenderem melhor).
Há um pintor do século XX, que morreu há pouco tempo, chamado Francis Bacon. Vocês conhecem o Francis Bacon?
Francis Bacon… eu vou trazer na próxima aula. Ah! Nós temos aqui? Pronto, está aqui, vejam o Francis Bacon…
Evidentemente, que aqui vocês não têm o Francis Bacon inteiro, isto aqui é apenas um rosto. (Certo?) E o Francis Bacon pinta telas, onde aparece o corpo inteiro, e ele pinta inclusive trípticos… que são três painéis que ele faz. Agora, eu vou usar o Francis Bacon da seguinte maneira: o mundo, a natureza é constituída de dois campos reais: um chamado empírico - que é o lugar das formas; e outro, chamado singularidade – que não tem formas; e eu chamei de forças. O Francis Bacon é um pintor que só tem uma questão – pintar as forças. Toda a questão dele é pintar as forças. (Não vou dar aula de Francis Bacon hoje…) Toda a questão dele é pintar as forças.
Você nota que só isso aqui já dá para notar que ele está fazendo uma destruição absoluta do rosto. O objetivo dele é desfazer a forma, é desfazer a forma do rosto. Claro que isso não fica muito evidente nesse momento, mas na frente vai ficar! Eu vou colocar o Francis Bacon como sendo um pintor a partir de duas realidades. Quais são as realidades? A empírica e a transcendental. Empírica, forma; o transcendental, singularidades ou forças (Tá?).
Vamos ver, por exemplo, o Dalí. O Dalí é pintor de quê? Ele é pintor de objetos mentais.
E ele dá aos objetos mentais a forma que o objeto mental tem enquanto objeto mental: relógios desmilinguidos, campos imensos… tudo aquilo que aparece nos sonhos.
Então, eu posso dizer tranquilamente que o Dalí é um pintor dos objetos mentais, mas o Francis Bacon, não. O Francis Bacon é um pintor das forças – ele quer pintar as forças. Então, estou chamando as forças de singularidades. E essas singularidades, eu disse que elas são a gênese do indivíduo. A GÊNESE! Nós temos um prejuízo muito grande (atenção, é um momento muito forte!), nós temos um prejuízo muito grande ao pensar gênese! E a nossa dificuldade em pensar gênese é por causa das velhas teogonias: as teogonias orientais, mesmo as teogonias gregas – Hesíodo, por exemplo, em que a gênese era separada do objeto que ela produzia. Então, nós achávamos que a gênese se dava num determinado tempo: num determinado momento, apareciam as forças genéticas; essas forças genéticas produziam o que tinham que produzir, e desapareciam; e aquilo que estava produzido passaria a existir. O que eu estou dizendo não é isso.
Eu estou dizendo que a singularidade… que eu chamei de campo transcendental (O indivíduo… indivíduo e sujeito eu chamei de formas.), essa singularidade, o campo transcendental, é genética – mas, só que a gênese nunca abandona o indivíduo: estão sempre juntos! Quer dizer, o velho corte teogônico… (Vocês entenderam o que eu falei da Teogonia?). A teogonia - estou dizendo, aqui, Hesíodo… As teogonias explicam a formação do mundo através de processos genéticos, mas elas separam a gênese: o criador do criado. É muito semelhante, muito semelhante ao Deus cristão: é um processo de criação em que o criador e o criado ficam separados. Aqui, nesse processo que estou dizendo pra vocês, não há a separação do criador e do criado. O criador e o criado estão juntos. Então, a singularidade está o tempo inteiro presente no indivíduo. As singularidades (Atenção, já vai ficar mais fácil!) são os fluxos intensivos de um corpo. Ou seja, todo corpo tem um organismo: são o organismo e as funções dos órgãos que individuam um corpo vivo e fazem dele um sujeito; mas nesse corpo atravessam o que se chama fluxos intensivos. São esses fluxos intensivos que eu estou chamando de… campo transcendental ou de singularidade.
Alª: Não é a força elástica?…
Cl: Não seria a força elástica. Vocês notem que, quando eu toquei na força elástica, eu a chamei de in-orgânica. Disse que a força plástica era orgânica. Mas eu apontei para a alma e disse que ela era an orgânica. A alma são essas forças!…
Alº: Esses conceitos, eu talvez confunda um pouco… é a força inorgânica e a anorgânica..
Cl: Eu distingui a plástica e a elástica. (Não é?) Sobre a elástica… não falei nada; eu disse que ela era uma força inorgânica, “molável”, com molabilidade, que produzia molas. Mola é o seguinte: você pega um elástico, distende o elástico, e ele volta, (não é?). O que significa que o elástico é constituído de molas. Porque a mola é aquilo que estica e volta para o lugar. É isso, a matéria inorgânica: ela é uma molabilidade. Então, a força inorgânica é elástica; a força orgânica é plástica; mas eu falei na existência de uma outra coisa – a alma… a alma. A alma seria uma outra coisa. Então, eu vou identificar a alma ao próprio corpo, sendo altamente nietzschiano, dizendo que a alma é corpo.
Alª: É o cristalino…
Cl: É o cristalino. É o cristalino. A alma é corpo, a alma é corpo – mas não o orgânico. A alma é vida – mas não é orgânica: chama-se an orgânica. Há um grande pensador que viveu no século XX, ele não é muito considerado nos meios clássicos, mas é um pensador excepcional, chama-se Antonin Artaud. E Antonin Artaud chamava essa alma, esse campo transcendental, essa singularidade, essas forças… de CORPO SEM ÓRGÃOS. Podem marcar: corpo sem órgãos. Então, a noção de corpo sem órgãos se aproxima… Corpo sem órgãos, Cso.
Alª: A arte é uma singularidade?
Cl: Olha… Não necessariamente… não necessariamente! Porque eu diria que a arte seria uma singularidade… então, se a arte fosse uma singularidade o artista estaria sempre expressando forças, expressando singularidades, expressando o anorgânico, expressando o cristalino… Mas nós conhecemos artes orgânicas. Por isso que eu vim dar a minha aula…
Alª: Mas isso não é arte.
Cl: Eu botaria em questão… Mas eu prefiro não fazer isso já. Mas está bem colocado! Porque a arte orgânica é a arte da representação. (Mas eu ainda não vou colocar nesta aula… Eu ainda não vou passar essa questão nesta aula. Acho que na aula que vem a gente entra nisso.)
O importante agora é a gente compreender a possibilidade do que estou chamando de corpo sem órgãos (Cso). Corpo sem órgãos, sinônimo: fluxos intensivos. Os fluxos intensivos do corpo.
Alª: Eu não entendi, eu estava pensando nisso de hoje, mas no que você disse na última aula, sobre a questão do orgânico, dos órgãos, que o organismo… aprisiona a vida…
Cl: É. Ainda é difícil… Você vai entender! Vai passar a fazer parte da sua vida. Pode ficar certa de que você vai entender. Porque essa questão que estou dizendo… (Só para responder a ela). Quando eu disse que o organismo aprisiona a vida, isso é o Artaud. O organismo prende a vida.
(Mais tarde eu voltarei a isso para colocar pra você… Na hora em que eu tiver o campo teórico suficientemente exposto, para que você possa compreender. Eu acho que o estudante compreende, quando eu compreendo. Eu sou uma espécie de imagem modelo da aula. (Viu?). Por exemplo, se eu dissesse agora, para você: Ah! Ah! Ah! O organismo não se equivale à vida, há alguma coisa a mais, eu não compreenderia! Seria um enunciado solto. (Entendeu?) A aula é um processo que expressa o pensamento daquele que a está dando. Então, quando eu obtenho a compreensão de alguma coisa, eu acredito de imediato que vocês compreenderam. Entendeu? Então, eu não posso precipitar alguma coisa descontextualizada. Se eu descontextualizo, se eu jogo aquilo, vira mera palavra, flatus vocis.
Al: Claudio, eu acho que o que está me dificultando é que eu estou procurando associar com o canto territorial, e ele é associado com a força elástica…
Cl: Não! Não! O canto territorial está associado ao anorgânico.
Alª: E o canto gratuito?
Cl: Também. Todos dois! Todos dois! Todos dois!…
Alª: Então, a força elástica não tem canto —-.
Cl: Nada… Não tem canto nenhum. A força elástica não canta, a força elástica é mola. São molas… Depois eu vou explicar melhor a questão do que é exatamente a força elástica, do que é a força plástica…
Alª: Eu estava pensando nos três cantos com as três forças…
Cl: Não… O que eu estou chamando de anorgânico não é nem a força elástica nem a plástica.
Alª: O canto territorial e o canto gratuito fazem parte do anorgânico?
Cl: Fazem parte do cristalino… do cristalino.
(Então, vamos concluir aqui).
O que estou chamando de campo transcendental é tão real… (Atenção aqui!). Quando eu falo real é a mesma coisa que: não é mental. É a mesma coisa. Não é mental, é autônomo – independe da minha mente para existir (certo?). Então, isso é a singularidade, o campo transcendental, o que mais?… (Todos os nomes que eu dei, tá?)
(Mas, agora, atenção:)
Há uma diferença do empírico e do transcendental. O empírico é FORMA… é forma. Logo, se o empírico é forma e o transcendental não é forma, nada me impede de chamar o transcendental de AFORMAL. E se eu chamar o transcendental de aformal, eu serei forçado imediatamente a dizer que o transcendental é CAOS.
Então, aqui emerge, então, emerge… (fim de fita)
Parte II
(…) o MUNDO EMPÍRICO [que] é constituído por indivíduos; e os indivíduos têm uma forma. Se eles mudam de forma, isso se chama trans - formação – aí eles passam para outra forma. Por exemplo, vocês vão encontrar… eu acho que eu posso até dizer que, em seus relógios líquidos, o Dalí trabalharia com transformações. Ele trabalharia com transformações. Agora, quando você pega esse pintor chamado Francis Bacon, e eu disse que Francis Bacon objetivava pintar as singularidades… (Foi isso que eu disse?) Pintar as forças… as singularidades. Mas eu vou apresentar outro pintor, ou outra escola, que visaria a pintar essas singularidades. E com essa outra escola a questão vai ficar mais clara: é o expressionismo abstrato ou a pintura informal. E eu acho que o melhor exemplo é o Pollock… Todo mundo conhece o Pollock? O Pollock… é o seguinte (eu vou explicar pra vocês:)
Você pega um tecido, o tecido é constituído de dois elementos entrelaçados: a trama, que é o elemento horizontal do tecido; e o urdume – que é o elemento vertical do tecido. O tecido vai fazendo assim… o fio da trama se entrelaçando ao urdume. (Não é?) Uma trama e um urdume: chama-se urdidura, a trama e o urdume… e isso é um tecido. Para produzir o tecido, o tecelão vai trabalhar com fios, que podem ser de origem animal, vegetal, artificial, plástico… não importa, ele pega esse fios e faz a urdidura – trama mais urdume.
Mas existe outro tipo de prática, utilizada pelos nômades, que é pegar um emaranhado de fibras, sem distinção de fios, ou fios emaranhados, tudo misturado, colocá-los sobre uma superfície e socá-los: pá!pá!pá!pá! – ou prensá-los. É assim que se produz uma coisa chamada feltro. O feltro não é um tecido, não é constituído por… trama e urdume. O feltro é socado e, sendo socado, os fios do feltro são um emaranhado. A pintura do Pollock são fios emaranhados. (Entenderam?)
Então, nada me impede de dizer que o Pollock é o pintor dos feltros. Nada me impede de dizer que ele pinta feltros e o Mondrian pinta tecidos. Nada me impede. (Certo?) Esses feltros são indicativo de singularidade. Por quê? Porque esses fios são caóticos, eles não têm forma, eles são caos puro, são caos puro.
E é muito interessante, porque o feltro é a vestimenta e a casa dos nômades. As tendas nômades são feitas de feltro. O que eu estou dizendo para vocês é que existem – vou usar a palavra vestimenta – vestimentas sedentárias, produzidas a partir dos tecidos; e as vestimentas nômades, produzidas a partir desses emaranhados. Então, esse emaranhado é exatamente aquilo que o Pollock pinta. Eu vou chamar esse emaranhado de singularidade, de caos, de força. (Certo?) Caos, força e singularidade. Mas o Francis Bacon também visa a pintar as forças. (Não foi isso que eu disse?) Ele visa a pintar as forças. Mas à diferença do Pollock, o Bacon produz formas: ele produz formas.
Olha aqui: não é nitidamente uma forma? Não é inteiramente diferente do emaranhado do feltro? Completamente diferente! Só que as formas do Bacon não vão sofrer transformações – ainda que pareçam ser transformações. Elas vão sofrer DEFORMAÇÕES.
A deformação é um processo que o Bacon vai usar para atingir o campo transcendental. Então, o que eu estou dizendo pra vocês, é o seguinte: que quando um pintor quer atingir esse campo transcendental, nós conhecemos na história das artes plásticas (mais do que isso, ouviu? Eu vou resumir, mas é mais do que isso)… Nós conhecemos dois processos: o processo da arte informal, que é o processo do Pollock, que eu estou usando como exemplo – que é liberar as forças, sem constituir nenhuma forma. É uma pintura centrada nas linhas... e não nas superfícies.
Enquanto que o Bacon, não: ele vai tentar deformar as figuras para, nessa deformação, atingir o campo transcendental, atingir as forças. Por exemplo, eu vou dar um exemplo mínimo pra vocês: o Francis Bacon é capaz de pintar a câimbra, é capaz de pintar o espasmo. São exemplos mínimos! Isso também ocorre no Egon Schielle. A câimbra e o espasmo são duas forcas. Então, para tentar manifestar essas forças ele cria deformações nas imagens que ele produz. As deformações do Bacon têm como objetivo o campo transcendental.
Al: O Bergman também é um cineasta das forças, não é? Essa coisa da câimbra e do espasmo… Eu estava assistindo o filme ontem e o tempo todo estava no primeiro plano também… o filme é todo em primeiro plano e… as sensações…
Cl: É muito bonito você aproximar o Bergman do Bacon… E é exatamente isso, o Bergman. (Cadê o rosto? Pega o rosto!) Vocês viram o Bergman (não é?). O que o Bergman faz no filme dele é uma desformalização: ele desfaz o rosto da Liv Ulman e o rosto da Bibi Anderson, ao ponto de a Bibi fingir que é a Liv para o marido. Então, toda a prática do Bergman é… (vou usar uma linguagem francesa) é um effacement, é uma desrostificação. [Claudio mostra um rosto do Bacon] Igualzinho… O que o Bacon faz aqui… ele escova, ele varre o rosto para desfazer as formas. Ele varre o rosto para desfazer as formas. E o objetivo dele é quebrar o domínio das formas e mergulhar nas forças ou no campo transcendental.
(Que horas são, S.? Vou dar um intervalo para o café!)
(Vamos tentar agora elevar a compreensão do que eu disse… Eu estou começando, R.)
Leibniz…
Leibniz é um filósofo do século XVII. Quer dizer, ele está no fim do XVII, no centro da Revolução Científica.
Eu vou recolocar o que eu dei na primeira aula – e eu disse pra vocês que o futuro altera o passado. Muitas coisas que eu disse na aula passada, dizendo agora a compreensão aumenta.
Leibniz é a filosofia barroca – e o barroco são os escombros da filosofia teológica. Ou seja, o barroco é a tentativa de salvar a filosofia teológica. Então eu diria: crise da teologia… crise da razão teológica, vamos usar assim. Crise da razão teológica… Na crise da razão teológica o surgimento de uma razão barroca. (Não vou explicar ainda o que é a razão barroca, só isso).
Da mesma forma, nós estaríamos numa crise do humanismo, da razão humanista, e na emergência de uma razão neo-barroca. Deleuze é um neo -barroco. Da mesma forma que o Leibniz é um pensador barroco.
Eu vou usar o Leibniz, eu vou usar o Leibniz.
Leibniz afirma a distinção entre duas idéias: a idéia de POSSÍVEL e a idéia de REAL. Então, para o Leibniz, possível e real não são a mesma coisa; mas, segundo ele, tudo aquilo que for real, antes de ser real é possível. Então, para o Leibniz…, tudo que é real, antes de ser real é possível. Mas, segundo ele… (eu ainda não expliquei o que é o possível e nem expliquei o que é o real. Apenas disse que o real e o possível não são a mesma coisa e eles têm uma relação de antecedente e consequente. O possível é o antecedente – literalmente, em termos lógicos – o possível é o antecedente e o real é o consequente). Mas o Leibniz vai explicar que o possível é INFINITO. Ou melhor, segundo Leibniz, existem INFINITOS MUNDOS POSSÍVEIS.
Por exemplo: você pega o Judas (isso porque me perguntaram aqui sobre os condenados), você pega Judas e nesse mundo que está aqui, Judas pecou. (Certo?) Mas é possível a existência de um Judas não -pecador. Então, a idéia de um Judas não pecador impõe a presença de uma quantidade infinita de mundos. Ou seja, esse mundo que está aqui, que é o único mundo (agora vai ficar muito claro) que é o único mundo que se tornou real… esse mundo em que nós vivemos é o mundo que se tornou real, mas para o Leibniz havia e há uma quantidade infinita de MUNDOS POSSÍVEIS e somente um se tornou REAL.
Conclusão: o possível é muito mais amplo do que o real. Então, para ele, há – eu não estou usando a palavra existe – há uma quantidade infinita de mundos possíveis e apenas um se tornou real (Certo?). Então, quando Deus (vamos dizer assim, porque Leibniz trabalha com Deus) quando Deus delibera de criar um mundo, o que ele faz? Ele vai ao infinito dos mundos possíveis procurar aquele que é MELHOR. Então, ele tem um critério… Deus tem um critério do melhor, não interessa o que é agora, ele tem um critério do que é melhor. Aí, ele torna esse mundo que está aqui, ou melhor, o nosso mundo que, naquele instante, era um dos possíveis entre os infinitos outros mundos, e torna o nosso mundo real – e os outros mundos continuam apenas no campo do possível.
Ou melhor, no momento em que Deus torna esse nosso mundo – que era um mundo possível – quando ele o torna real… Ele torna real, porque o ‘nosso mundo’, é o melhor dos mundos… Ele só torna o nosso mundo – que é um mundo possível – um mundo real, porque o nosso mundo é o melhor dos mundos, os outros mundos que também eram possíveis, torna m- se impossíveis.
O que quer dizer isso? Quer dizer o seguinte: o Leibniz pode escolher entre uma infinidade de mundos para tornar um deles real. Ele escolhe um – o nosso – porque, segundo ele, o nosso é o melhor dos mundos. Então, sempre que Deus tiver que escolher um mundo para existir, qual o mundo que ele vai escolher? O nosso, o melhor. No momento em que ele só pode escolher um mundo, os outros se tornam impossíveis.
Eu só estou dando um exemplo desse processo, porque eu não vou nem prosseguir, mas só para espetar o vírus em vocês… Porque este problema do possível e do impossível vai ser trabalhado na frente, porque é a única maneira que nós temos para compreender as formas do pensamento com o campo transcendental.
Então, o que aconteceu?… Deus trabalha ou não com o infinito? No possível, Deus está diante do infinito? O infinito dos mundos possíveis. Então, quando Deus está diante dos infinitos mundos possíveis, Deus está mergulhado no caos – o caos dos infinitos mundos possíveis. Ele está mergulhado no caos. Então, ele vai retirar desse caos o melhor dos mundos e tornar, esse melhor dos mundos, real. Então, ele torna o nosso mundo real. Então, esse mundo que está aqui se tornou real. Mas cada mundo possível, ou este nosso mundo é, nele mesmo, INFINITO. Então, o nosso mundo, ele é infinito. Da mesma forma que antes nós tínhamos o infinito dos mundos possíveis, agora nós temos o nosso mundo que é infinito.
- O que quer dizer infinito? (Na maior simplicidade, para vocês entenderem…) Para o Leibniz, se você for dividindo a matéria num ponto cada vez menor, você vai dividir a matéria ao infinito, porque a matéria nunca acaba. Ou seja, ela vai se tornando infinitesimal, mas sempre existirá… Não vai nunca chegar o momento em que ao rasgar a matéria não haja duas metades. Vai haver sempre duas metades. E sempre que houver duas metades o outro todo também são duas metades. Então, para ele, a matéria é infinita. Se a matéria é infinita, nesse instante, lá no infinito da matéria, dois elementos se chocaram e fizeram ruído – e nós não ouvimos…
O que eu estou dizendo é que a nossa percepção é constituída para apreender do mundo um pequeno conjunto. A nossa percepção é constituída para apreender um pequeno conjunto do mundo. Então, se, por acaso, a nossa percepção se desarrumar, nós mergulhamos no infinito do mundo e passamos a ouvir o barulho daquela pequenina matéria que se chocou com a outra – e enlouquecemos. Mas [em que circunstâncias] nós enlouqueceremos? No momento em que se quebrarem os limites da nossa percepção! Os limites da nossa percepção são constituídos para impedir que nós caiamos na loucura total, no delírio total, no CAOS. Então, nós, os homens, somos dotados de uma força chamada PERCEPÇÃO. E com essa força, chamada percepção, nós apreendemos uma determinada parte do mundo. Se essa força chamada percepção, que é uma força limitadora, se quebrar, nós mergulhamos no infinito do mundo – o que significa que todos nós estamos ameaçados pelo caos o tempo inteiro. O caos nos ameaça o tempo inteiro. (Entenderam?)
O caos nos ameaça o tempo inteiro. E essa ameaça do caos é muito fácil de ser compreendida, porque a qualquer instante da nossa vida, quando nós vamos centrar alguma coisa pra pensar, alguma coisa para observar, esse elemento que nós centramos pra observar ou pra pensar, nós arrancamos do CAOS… nós arrancamos do caos. Porque nós somos constituídos por uma percepção clara – e essa percepção clara é uma pequena porção de realidade; mas essa percepção clara está pousada sobre um infinito de percepções sombrias e obscuras. Então, o nosso espírito, o fundo do nosso espírito é sombrio, escuro, penetrado do infinito deste mundo que está aqui. Então, nós carregamos dentro de nós o infinito da natureza. Cada um, cada ser vivo, carrega consigo o infinito de todo… (eu vou usar a palavra mundo, ouviu?) Cada um de nós carrega consigo o infinito deste mundo.
Por exemplo, nesse instante um pequeno raio cortou a superfície gasosa do planeta Júpiter – isso faz parte do meu fundo sombrio! Cada um de nós carrega consigo o seu fundo sombrio. O fundo sombrio é o infinito do mundo inteiro. E isso é uma maneira de pensar barroca. É uma maneira de pensar barroca! Por isso, as telas dos pintores barrocos (eu vou trazer na próxima aula o El Greco para vocês verem). As telas dos pintores barrocos… o fundo das telas é um fundo sombrio.
Alº: Tem um Caravaggio aí…
Cl: Me dá o Caravaggio.
É um fundo sombrio. É um momento… (Atenção! Porque isso é básico para as próximas aulas… pra mim, ouviu?) Você pega o Renascimento, a pintura da Renascença e a pintura barroca… a diferença básica de uma e outra pintura é que [n]a pintura da Renascença o fundo é giz ou gesso branco, enquanto que o fundo barroco é o fundo sombrio.

Olha lá! Olha o fundo… olha o fundo sombrio: eles trabalham muito com marrom e vermelho. Então, desse fundo sombrio é que vão ser extraídos os clarões, a percepção clara. (Não sei que tela era essa… Nem vi direito. É um rosto que está ali?). Então, nessa tela, o que é claro é aquele rosto. Aquele fundo que está ali é o infinito do mundo inteiro. Esse infinito do mundo inteiro, cada ser vivo – e o nome do ser vivo é… mônada (m-o-n-a-d-a, proparoxítona) – cada ser vivo carrega consigo o infinito do mundo inteiro. O infinito do mundo inteiro está dentro dele. Então, acontece uma das coisas… Somente uma razão barroca pode construir alguma coisa desse tipo… As mônadas são finitas, porque cada ser vivo é finito, mas carregam dentro de si o infinito do mundo inteiro. Por isso, é muito simples compreender isso… necessariamente, cada mônada tem como fundo o sombrio. Porque tem como fundo tudo que existe no mundo inteiro (está bem assim?).
Al: Eu não entendi… essa questão dos dois elementos que se chocam…
Cl: Ah! O que eu quis dizer é o seguinte: por exemplo, você quer ver? Olha aqui: [Claudio bate numa superfície:] pá…pá..pá… Você ouviu, não ouviu? Agora, nesse instante, lá, no infinitesimal, há uma porção de objetos se chocando e tais objetos se chocando fazem parte do nosso fundo sombrio. Fazem parte do nosso fundo sombrio. (Não sei se está claro isso daqui…). Nós temos uma pequenina porção de claro… muito pequena… Eu não dei o exemplo do carrapato? Quais são os clarões do carrapato? Sangue quente, luz e… sangue quente, luz e suor. São os três clarões dele. Agora, nós estamos mergulhados num fundo sombrio onde tem infinitos elementos que nós poderíamos apreender e não apreendemos. Então, nós estamos ameaçados, o tempo inteiro, de cair no caos. Nós estamos o tempo todo ameaçados de mergulhar no caos. (Vocês entenderam aqui? Não? O fundo sombrio exatamente o que é?) O fundo sombrio é o infinito da natureza que está dentro de nós. Está dentro de uma pulga, está dentro de um cachorro… Está dentro de qualquer ser vivo. Qualquer mônada.
Al: Então, ao mesmo tempo em que ela equilibra, ela também reduz…
Cl: Equilibra o quê?
Al: O… o ser humano. Essa percepção que ela delimita…
Cl: Delimita… Nós delimitamos…
Al: Delimita, mas também reduz…
Cl: Reduz como?
Al: Reduz, no sentido de não poder, não ter essa amplitude…
Cl: Claro! Não pode ter… não pode ter! O Leibniz é muito definitivo: só uma mônada pode ter infinito – Deus. Para ele, então, cada ser vivo, cada mônada tem um clarão. Mas, prestem atenção, se vocês quiserem observar com presteza o que Leibniz está dizendo, na hora em que vocês produzem um pensamento ou uma imagem, seja o que for, vocês vão verificar claramente que aquele pensamento e aquela imagem estão subindo de um fundo sombrio.
(Vou mudar a linguagem)…
Nós vivemos mergulhados na confusão. Dessa confusão, a gente retira alguma coisa que se torna uma clareza para nós. Isso daqui que está acontecendo é porque o século XVII, com a orientação teológica do século XVII – e isso também aparece no século XX – é apaixonado pela claridade… pela claridade. E os barrocos vão inventar um novo tipo de luz, uma luz mortiça, uma luz completamente diferente. Vocês podem verificar isso no expressionismo alemão, sobretudo no cinema. Por exemplo, os filmes de Murnau – Nosferatu, O Gabinete do Doutor Calligari – as sombras e as luzes… O expressionismo alemão é produto do mundo barroco.
Então, o barroco está dizendo que não é a vitória do claro sobre o escuro. Não é nada disso: a vida não é isso! A vida é sempre alguma coisa… Requer muito esforço, é através de muito esforço que nós conseguimos tirar alguma coisa desse fundo sombrio, arrancar alguma coisa desse fundo sombrio. Mas a nossa vida é mergulhada nesse fundo sombrio. Então, aqui vai ficar muito claro: a morte é a perda do clarão – e nós mergulhamos no fundo sombrio. Então, aqui é uma das coisas mais bonitas da filosofia do Leibniz. Ele diz que nenhuma alma desaparece… nenhuma alma desaparece: elas mergulham no fundo sombrio! E, agora, ele diz outra coisa lindíssima: mas como a tendência das almas é ter clarões, elas voltam! A beleza... não religiosa; não religiosa… porque vocês vão ver aparecer pensamentos sobre a eternidade – em estética ou em arte muito mais poderosos do que os pensamentos da eternidade feitos pela teologia. Isso porque a teologia – aí quem diz isso não é o Leibniz, quem diz isso é o Proust – jamais poderá mergulhar na eternidade. A teologia não nos dá a eternidade. O que ela nos dá, é uma imagem deficiente da eternidade.
O que eu estou dizendo, então, é que os objetivos da filosofia barroca, o objetivo do Leibniz é mostrar que uma alma são os seus clarões. Os seus clarões ou os seus relevantes, os seus notáveis… Clarão, relevante, notável – são as partes claras que nós temos na nossa vida. Então, essas ‘partes claras’ emergem do ‘fundo sombrio’. Se nós perdêssemos essas partes claras, nós cairíamos no fundo sombrio – e isso é o CAOS. O caos não é propriamente desordem – o caos é a presença de forças que se cruzam. Façam uma experimentação na sua própria subjetividade, que vocês vão ver que a cada instante da nossa vida, determinadas inclinações se confrontam dentro de nós, querendo se tornar claras. Determinadas tendências… É isso que se chama inquietude. Nós somos seres… todo ser vivo é inquieto; e a inquietude é porque a todo instante das nossas vidas determinadas forças querem subir e se tornar clarões. Se nós não tivéssemos a inquietude nós seríamos como uma televisão com defeito, ficaríamos congelados numa só percepção. O que nos impede de ficar congelados numa só percepção é a existência, em nós, da inquietude. Essa inquietude é que nos tira de uma percepção – e nos conduz para outra. A perda da inquietude – é a morte. Perde-se a inquietude – perde-se a percepção e mergulha-se no fundo sombrio.
Então, a morte, para o Leibniz, é a mesma coisa que um aturdimento – é como se a gente tivesse mergulhado num mar de ondas violentas, produzindo trovoadas enormes e nós não fossemos capazes de discernir ou distinguir nada. Nós cairíamos no que estou chamando de aturdimento… como um homem diante do mar… e o mar…
Al: É o caos, não é?
Cl: É o caos. Isso é o caos. Então, o caos é o confronto de forças, forças que estão percorrendo aquele… aquele fundo sombrio.
Al: A singularidade está no fundo sombrio?
Cl: Está no fundo sombrio. Está lá… está lá, no fundo sombrio. Porque o que a gente tem que compreender é que… (aqui vai ser uma coisa muito forte, a sua pergunta foi linda, eu vou forçar por aqui). O Leibniz diz que não existe o mundo fora da gente. O mundo está dentro da gente. Cada um de nós carrega o infinito do mundo inteiro. Cada um de nós carrega o infinito do mundo inteiro. Então, o mundo que nos aparece não é nada mais que uma pequena alucinação - cada um de nós tem uma alucinação. Nós temos uma alucinação… e aparece o meu mundo, aparece o mundo dela, aparece o mundo dele… Nós estamos mergulhados em alucinações! Por isso – aí eu estou te dando essa resposta por causa disso – a diferença do homem comum para o artista é que o homem comum não pode jamais se comunicar com outro homem. Não há como um homem se comunicar com outro. Porque nós estamos fechados na nossa mônada. Não há como nós entrarmos em comunicação com ninguém. Nós vivemos numa suposta ilusão comunicativa nos processos do amor e da amizade. São dois processos ilusórios! Nós só podemos entrar em comunicação pela arte. Que é o momento em que você bota para fora, você revela alguma coisa, você traz pra fora alguma coisa em que todos podem conviver. O que estou dizendo é que cada mônada carrega consigo o mundo inteiro. Isso se chama SOLIPSISMO: cada mônada carrega consigo o infinito do mundo inteiro. Então, quando eu expresso o meu mundo, a expressão do meu mundo é a minha subjetividade. Ninguém conhece essa subjetividade, ninguém conhece! Nós vivemos mergulhados na mais completa confusão, no mais completo atordoamento – os homens, ou os seres vivos são quase que totalmente atordoados: eles vivem naquele clima de atordoamento! O esforço da arte e da filosofia é vencer o atordoamento.
Al: O canto do pássaro estaria no caos?
Cl: O canto do pássaro – o canto gratuito?
Al: É o canto gratuito, o cristalino.
Cl: O canto gratuito?… O canto gratuito não é um canto orgânico. O canto gratuito é o seguinte: o pássaro se encontra com o crepúsculo. O crepúsculo são as forças da natureza. No pássaro, são outras forças. No ser vivo, essas forças chamam-se SENSAÇÕES. Quando as sensações do pássaro se encontram com as forças da natureza – nasce o RITMO. Então, o que o pássaro faz ao cantar, é a produção de ritmo – ele inventa ritmo. O u seja: os ritmos vêm do caos. Os ritmos vêm do caos e organizam o caos: os ritmos são como que clarões para aquele pássaro!
Al: —- é uma abertura da mônada para o infinito?…
Cl: Ela tenta se abrir para o infinito, ela tenta se abrir para o infinito. Tenta ir além dos seus limites – a arte e a filosofia… seriam a quebra dos limites. Como eu chamei o pensamento do Deleuze de neo -barroco e falei numa crise da razão humanista… Porque a razão humanista é aquela que quer nos deter nos nossos clarões; e a razão barroca é aquela que quer ir além dos nossos clarões: mergulhar no infinito. Por isso que o mundo barroco – por exemplo Jorge Luiz Borges – é um mundo cheio espelhos, cheio de labirintos, cheio de corredores... porque é um mundo que não tem limites. É um mergulho no que se chama labirinto, um labirinto sem linhas para você poder se conduzir ali dentro.
Hoje, a razão barroca tem que dar conta disso daqui, inclusive em termos de lógica – e aí se inventou a lógica combinatória. A lógica combinatória é exatamente para dar conta, em termos de lógica, desse infinito que está aí.
(Bom…)
O melhor dos mundos possíveis…
Leibniz diz que, dentre o infinito de mundos possíveis, Deus escolheu um – que para ele é o melhor…
(Atenção, que eu agora vou passar a falar sobre isso. Agora vai passar uma aula muito rigorosa em termos de filosofia…)
Leibniz colocou como mundo existente… o melhor dos mundos possíveis e esse melhor dos mundos possíveis é o melhor na imanência do mundo. É o enunciado mais poderoso que eu deixo aqui nessa aula, viu? O melhor é melhor na imanência do mundo! O que eu estou dizendo aqui? Eu estou dizendo que o próprio ser do mundo que é melhor. Não é porque existe alguma coisa superior que esse mundo copiaria, que ele é melhor. Ele é melhor nele mesmo. (Vou explicar para vocês.)
A filosofia, ao nascer, nasce sob o regime de dois mundos – é o modelo platônico. Ela nasce sob o regime de dois mundos: o MUNDO SUPERIOR, que este mundo – que é o nosso – deve copiar. Então, o mundo, o nosso mundo, quando nasce, é considerado um MUNDO CÓPIA. No platonismo, existe o mundo superior que o nosso mundo copia.
(Eu, agora, vou explicar isso na prática:)
Um pensador grego, chamado Sócrates – ele nunca escreveu um livro, ele passava a vida dele em conversas com as pessoas, na Grécia; ele discutia com as pessoas… ou melhor, o objetivo dele era acabar com as discussões – e acabar com as discussões constituindo algum componente que era indiscutível. Então, há no Sócrates um calor filosófico - o filósofo é aquele que não discute; então, ele visava a acabar com as discussões. O filósofo não discute, a discussão é um processo opinativo e que não tem nada a ver com a filosofia. Então, o Sócrates, naquele momento, fez determinadas práticas que a cidade dele considerou como práticas criminosas. E o Sócrates, por causa disso, foi julgado; e, ao ser julgado, é condenado à morte – e essa condenação é para beber cicuta. Mas, ao ser condenado à morte, está havendo uma festa em Delfos e Atenas manda um navio para Delfos, para participar da festa. E enquanto o navio não voltar para o porto de Atenas, os condenados à morte não podem morrer. Eles não morrem (tá?).
Então, Sócrates está em Atenas, condenado à morte… Por quem? Quem condenou Sócrates à morte? Quem condenou Sócrates à morte foram as leis de Atenas. Então, Atenas é uma cidade grega, chamada cidade-estado e ela tem suas próprias leis, assim como as outras cidades da Grécia – cada uma delas possui as suas leis próprias.
Sócrates foi condenado pelas leis de Atenas, mas os amigos de Sócrates achavam que aquele julgamento que fizeram com ele tinha sido um julgamento injusto; e, por isso, aconselhvam-no a fugir: “Sócrates, foge; vai embora Sócrates. Você vai para Mégara, vai para Tebas, vai para Esparta… onde a lei é outra, aí você estará livre. Mas Sócrates não fugiu, esperou o navio chegar… bebeu a cicuta e morreu. Então, a pergunta é: por que o Sócrates morreu? Por que ele bebeu a cicuta?
(Então vamos examinar… para vocês entenderem o que é Leibniz).
O Sócrates bebeu cicuta porque a cidade grega ou qualquer cidade grega é governada pelas leis da cidade. Então, a lei na Grécia é uma lei relativa: cada cidade tem a sua própria lei. (Nada do que eu digo é perdido, viu? Quando eu digo a lei é relativa eu tenho um objetivo.)
Então, as leis gregas são relativas, cada cidade tem a sua própria lei. Mas existe naquele momento da Grécia, o que se chama o modelo platônico da lei. E Platão coloca que existe uma entidade que ele chama de O BEM e esta entidade chamada O BEM seria a entidade que deveria governar os homens. Então, os homens não necessitariam de leis, eles deveriam entrar em contato com O BEM e se submeter a tudo aquilo que O BEM determinar que eles façam. Mas acontece que o bem está muito distante, o bem está muito indeterminado; e os homens discutem… é a discussão que nós fazemos – o que é O BEM, o que é O MAL. Nós discutimos assim: matar um homem que está condenado à morte, vamos dizer, pelo câncer, não tem mais salvação… ou matar um homem que teve morte cerebral – é bom ou mau?
E nós ficamos sem responder, não sabemos dizer exatamente. Um diz é bom outro diz é mau - não sabemos o que dizer!…
Então, o que a gente faz? Se submete à lei, aceita a lei, aceita a lei: nós não cometemos eutanásia, porque aceitamos a lei. Então, o que acontece? Por que nós não conseguimos compreender exatamente o que é O BEM, nós botamos no lugar do BEM a lei. Então, para os gregos a lei é a representante do BEM: a lei representa o BEM. Qual é o motivo de a lei representar O BEM? A lei representa O BEM porque, através do nosso pensamento, nós não conseguimos atingir O BEM. Então nós colocamos a lei no lugar do BEM e a partir da colocação da lei em lugar do BEM, aparece outra figura – a outra figura chama-se O MELHOR.
O melhor para aquele homem que não conhece O BEM diretamente, o melhor para ele é – obedecer à lei. O homem deve obedecer à lei porque a lei é a representante do BEM. Então, constitui-se esse modelo na Grécia: existe O BEM, O BEM não é conhecido pelos homens: no lugar do BEM entra a lei e os homens para se tornarem o que os gregos chamam de agatós (virtuosos), eles passam a obedecer à lei. O que é o melhor para o homem nesse modelo? O melhor é obedecer à lei.
Essa estrutura que está aí foi integralmente retomada pelo cristianismo. O cristianismo bota Deus no lugar do BEM – mas é a mesma coisa, a mesma coisa. Então, O BEM, A LEI e O MELHOR.
- O que é O MELHOR? Obedecer à lei. (Todo mundo entendeu?) O melhor é obedecer à lei.
Então, a partir disso, nós temos Leibniz. O que é que o Leibniz vai criar? O melhor dos mundos possíveis. Então, quando a gente ouve o Leibniz criar o melhor dos mundos possíveis, no universo cristão, o que teria que ser o melhor dos mundos possíveis? O mundo que obedecesse… à lei, por causa do… BEM. Mas acontece que a razão barroca são os escombros da razão teológica. Então, o melhor para o Leibniz não é aquilo que obedece à lei, o melhor é aquilo que pode CRIAR e INVENTAR. O nosso mundo é o melhor, porque nele pode haver criação.
Então, é uma das coisas mais lindas que se pode compreender no espírito humano. Foi necessário a quebra e os escombros da razão teológica para a alteração da compreensão do melhor. Porque se você fosse falar com o Sócrates, com os homens que se originam do pensamento teológico ou da filosofia grega, o melhor para eles era definitivamente… (o quê?) obedecer à lei.
Para o Leibniz, não. O melhor não é jamais obedecer à lei; o melhor é CRIAR e INVENTAR. Logo, os homens progridem… Os homens progridem, porque eles estão no reino do melhor. Eles podem progredir os seus modos éticos, as suas tecnologias… e aqui é que aparece a questão que ela [uma aluna] fez para mim: a questão lindíssima do Leibniz. Nós estamos no… melhor dos mundos possíveis; e esse melhor dos mundos possíveis foi criado por Deus. Deus criou o melhor dos mundos possíveis. Então, Deus para o Leibniz não reproduz o Deus teológico; já é um Deus barroco – que criou o MELHOR, sem LEI e sem BEM. O melhor dos mundos do Leibniz, não precisa de outro mundo! E a constituição do nosso mundo, que é o melhor dos mundos, que é o mundo em que se pode criar e que se pode inventar... logo, o homem já é, por natureza, uma tendência para o infinito, no sentido de que ele não precisa ficar limitado a nada – a tendência dele é criar e inventar e não se submeter a uma lei, não se submeter a um BEM superior: não existe nada superior… Isso que eu chamei de o melhor dos mundos possíveis se explica pela IMANÊNCIA, ele não precisa da transcendência do BEM, nem da transcendência do MELHOR. Ele se explica pela sua própria imanência. E isso é que se chama PLANO DE IMANÊNCIA.
Plano de imanência. Plano de imanência é alguma coisa que para se explicar não precisa de outra. Ela própria se explica.
Vamos ver outra vez o modelo platônico. Quando é que se é melhor no mundo platônico? Quando se obedece à lei! E a lei é o quê? Representante do BEM. Então, O MELHOR é explicado pela transcendência do BEM. A transcendência do BEM é que explica o MELHOR e no Leibniz, não. No Leibniz o melhor se explica nele mesmo – esse mundo é o melhor porque nele há criação.
Al: —–
Cl: Exato. Isso é o modelo platônico. Não quer dizer que todo grego se dá assim, (Entendeu?). É o seguinte, a sua colocação… A polis (palavra grega – Petró-polis) cidade. A cidade grega é uma cidade que sai da cidade oriental e se constitui lá naquele Mediterrâneo (não é?). E na cidade grega, ao nascer, nasce uma coisa que não existia na cidade oriental, que se chama a PALAVRA DIÁLOGO. A palavra diálogo… (eu acho que eu já falei pra vocês) emerge na cidade grega, onde cada cidadão tem a plena potência de falar o que bem entender; ele pode falar o que ele quiser… O único problema é que se ele falar... o interlocutor pode refutar. Então, se ele falar uma besteira os interlocutores vão rir. Assim, na hora em que o grego fala, ele se prepara.
Mas o mais importante é que as leis da cidade grega, essas leis que condenaram Sócrates, são formadas pelos cidadãos gregos. Eles é que constituem as leis. Eles próprios constituem as leis. E as leis deles, as leis dos gregos, são constituídas pelas faculdades que eles consideram superior, que é a razão. Então, esse momento é um momento muito forte do pensamento, porque nasceu…
(fim de fita)

poesia concreta - o projeto verbivocovisual


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Allen Ginsberg

Irwin Allen Ginsberg (Newark, Nova Jersey, 3 de junho de 1926 – 5 de abril de 1997) foi um poetaamericano da geração beat, que ficou conhecido pelo seu livro de poesia Howl (1956).
 

William S. Burroughs

A sua obra mais conhecida é Naked Lunch, Almoço Nu no Brasil), e Refeição Nua em Portugal, seguida de Junkie. Grande parte de sua obra, de atmosfera fantástica e grotesca, tem caráter autobiográfico. Apesar de fazer parte da chamada geração beat, seus livros têm pouco em comum com o restante desses autores, já que a linguagem utilizada provém de fluxos de consciência durante o uso de alucinógenos. Homossexual depois da morte acidental da esposa causada por um disparo com arma de fogo. Foi um dos pioneiros da literatura experimental, tanto no universo léxico escatológico, urbano, comum e absurdo como no consumo de drogas para produção subjetiva de textos.

Jack Kerouac


Os Beatniks foram um movimento socio-cultural nos anos 50 e princípios dos anos 60 que subscreveram um estilo de vida anti-materialista, na sequência da 2.ª Guerra Mundial.
O autor Jack Kerouac introduziu a frase "Geração Beat" em 1948, generalizada do seu círculo social para caracterizar o submundo de juventude anti-conformista, reunida em Nova Iorque naquele tempo. O nome surgiu numa conversa com o novelista John Clellon Holmes (que publicou um romance sobre a Geração Beat, Go, em 1952), junto com um manifesto no The New York Times: "This Is the Beat Generation".[1] Em 1954, Nolan Miller o seu terceiro romance, Why I Am So Beat, relatando as festas de fim-de-semana de quatro estudantes.
O adjetivo "beat" foi introduzido ao grupo por Herbert Huncke, embora Kerouac tenha expandido o significado do termo. "Beat" fazia parte do calão do submundo – o mundo dos vigaristas, toxicodependentes e pequenos ladrões, onde Ginsberg e Kerouac procuraram inspiração. Beat era o calão para "beaten down" ou "downtrodden", ambas expressões que podem significar oprimido, rebaixado, espezinhado. Mas para Kerouac, tinha uma conotação espiritual. Outros adjetivos discutidos por Holmes e Kerouac foram "found" (encontrado, achado) e "furtive" (furtivo). Kerouac alegou que ele tinha identificado (e incorporado) uma nova tendência análoga à influente Geração Perdida.[2][3]

Jack Kerouac escreveu sua obra-prima “On The Road”, livro que seria consagrado mais tarde como a “bíblia hippie”, em apenas três semanas. O fôlego narrativo alucinante do escritor impressionou bastante seus editores. Jack usava uma máquina de escrever e uma série de grandes folhas de papel manteiga, que cortou para servirem na máquina e juntou com fita para não ter de trocar de folha a todo momento. Redigia de forma ininterrupta, invariavelmente sem a preocupação de cadenciar o fluxo de palavras com parágrafos.
O material bruto que chegou às mãos de Malcom Cowley, da editora Viking Press, em 1957, deu trabalho. Os rolos quilométricos de texto tiveram de ser revisados, foram inseridos pontos e vírgulas e praticamente 120 páginas do original foram eliminadas. O estilo-avalanche de Jack tinha ainda um elemento intensificador. Ao contrário às idéias correntes, que trabalhou em cima do livro sob o efeito de benzedrina, uma droga estimulante, Kerouac, em admissão própria, abasteceu seu trabalho com nada mais que café.

Kraftwerk

Kraftwerk (pronunciado [ˈkraftˌvɛrk], usina de energia em alemão) é um grupo musical alemão que inventou um estilo de música techno totalmente feita e tocada por meio de sintetizadores, tornando a música eletrônica mais acessível ao grande público, principalmente porque se tornaram os precursores de estilos como o techno e o electro, bem como a moderna dance music em geral. A banda foi fundada por Florian Schneider e Ralf Hütter em 1970, mas contando sempre com a participação de outros músicos, sendo que muitos sequer chegaram a participar de algum disco. Entretanto, a formação mais conhecida, duradoura e bem sucedida foi aquela que se consolidou entre 1975 e 1987 e que incluía os percussionistas Wolfgang Flür e Karl Bartos.[1]
As técnicas que o Kraftwerk introduziu, assim como os equipamentos desenvolvidos por eles, são elementos comuns na música moderna. A banda tem sido considerada por alguns como tão influentes quanto os Beatles na sua participação na música popular na segunda metade do século XX. As suas letras lidam com a vida urbana e a tecnologia europeia pós-guerra. Geralmente mínimas, ainda assim revelam celebração e alertas sobre o mundo moderno[1] .

Bruce Nauman

sábado, 16 de abril de 2011

“I in U / Eu em Tu” – Laurie Anderson

29 Mar a 26 Jun
Local: Foyer e 2º andar | CCBB RJ
Horário: Terça a domingo, das 9h às 21h 

 Mostra retrospectiva elaborada exclusivamente para o CCBB e que apresentará um conjunto instigante de obras originais de Laurie Anderson, composta de instalações, fotografias, desenhos, vídeos, músicas e documentações de performances, criações produzidas desde os anos 1970 aos dias atuais. Pela primeira vez no Brasil, obras desta artista multidisciplinar que, a partir do conhecimento da música tradicional, pesquisou novos meios como o uso da tecnologia, do corpo e da linguagem como forma de expressão.

Curadoria: Marcello Dantas.



domingo, 10 de abril de 2011

O tímpano é uma tela?

Rodolfo Caesar - rcaesar@terra.com.nr

Escola de Música - UFRJ

Resumo: Os constantes avanços tecnológicos oferecem aos artistas quantidade crescente de ferramentas, facilitando acesso a diferentes frentes de produção. Uma recente categoria, a arte multimídia, parece, em sua hegemônica  presença, balançar divisões genéricas estabelecidas há séculos. Haveria perigo para a música? A arte multimídia teria saudades da obra de arte total de Wagner? Ainda despontam algumas questões terminológicas.

As perguntas

O título do texto não importa muito pelas palavras que associa, mas pelo ponto de interrogação terminando a frase. Sem teor afirmartivo, manifesta bem mais um estado de perplexidade - testemunho da condição anfíbia de pesquisador e compositor. Por esta razão parecerá muito mais um depoimento pessoal que um relato de pesquisa claro, metódico e objetivamente exposto. Muito embora seja, sim, resultado de pesquisa, porque sem ela as dúvidas nem teriam surgido. Trata da busca de um compositor envolvido com a música eletroacústica, portanto interessado na escuta. Nesta condição, e tendo um objeto de indagação tão complexo, quanto mais o compositor pesquisa e faz música, mais encontra becos sem saída em lugar de certezas. Anfíbia, também, é a condição da própria espécie em questão - a música eletroacústica - que nasceu nas ondas do rádio, instalou-se pouco adequadamente no palco italiano de salas de concerto, e não consegue represar sua vocação cinematográfica. Não sendo radiofonia, e nem cinema, projeta-se anacronicamente (‘anatopicamente’ também?) como e aonde puder. Trata-se, portanto, de uma arte em ‘estado de por-fazer’, seus criadores tendo a ganhar se reconhecessem sua condição de inacabamento, sendo justamente essa inadequação o que garante parte de sua riqueza.

Para iniciar este desfiar de dúvidas e paradoxos, gostaria de apresentar alguns trechos: uma pequena peça de Pierre Schaeffer, um trecho de Luc Ferrari, um trecho de ‘Era uma vez no oeste’, filme de Sergio Leone, e outro de ‘Stalker’, filme de Tarkovski.
 (- escutar Étude Pathétique de 2’45 até’ o fim.)

Este ‘Étude Pathétique’, de 1948, é exemplar da primeira fase de Schaeffer, a mais rica, porque fertilizava já naquela época o que está centralmente tematizado neste texto: a abrangência da escuta. Nas obras posteriores de Schaeffer não ouviremos mais, por exemplo a sobreposição, em simultaneidade, de três tipos de escuta: uma ‘musical’ segundo o senso comum (arpeggio de notas de piano), uma indicial, de sons referenciais nos loops (de sons vocálicos identificáveis) e a ‘concreta-reduzida’ (da estrada de ferro passando por filtragem).

Entretanto a ‘referencialidade’ vinha sendo desestimulada entre os membros do Club d’Essai, do Groupe de Musique Concrète e do primeiro Groupe de Recherches Musicales, até 1963/64, quando Luc Ferrari inaugurou a ‘musique anecdotique’ com ‘Hétérozygote’.
(- escutar ‘Presque Rien I’ – parte 3 )

O exemplo escolhido é de ‘Presque Rien’, de 1971, obra em que nem o gesto da montagem é sentido. A referencialidade de Ferrari na verdade é sustentada por uma escuta reduzida segundo o gosto schaefferiano, mas abre o espectro da experiência musical para a imaginação de outros sentidos. A imagem visual, cinematográfica é obviamente a primeira vizinha. No entanto, além das imagens visuais, um certo calor de verão pode ser inferido pela cena. Pelo aumento de volume (amplitude) dos sons de insetos o autor de certa maneira precipita uma sensação de calor, atingindo assim o sentido tátil térmico.

Em caminho inverso ao da música concreta ‘excludente’ da referência, o cinema, por ex. o de Sergio Leone, re-dimensiona a importância não somente da música incidental mas dos ‘sons incidentais’ (com insetos idênticos aos da música de Ferrari!). Diz-se que as filmagens decorriam enquanto o compositor da trilha (Ennio Morricone) executava ao vivo (piano?) as músicas das cenas. Isto explicaria a marcha bailada dos bandidos na cena mostrada a seguir (‘Era uma vez no oeste’, 1968), que mais de um crítico confundiu como uma re-invenção da ópera - esta re-organização dos papéis das imagens sonoro-musicais e visuais. Mas é mais do que isto: é uma outra forma. Não é só a ‘música’ que adquire nova importância e papel neste filme. Sem falar dos quinze minutos do início do filme, todo construído com ruídos ambientes, a seqüência a seguir já tem elementos suficientes para exemplificar uma seção ‘conduzida’ pela música. Os sons de cordas ‘sul tasto’ se assemelham a sons ferroviários, e o barulho do tiro final se mistura ao apito de um trem, denunciando-o como o verdadeiro vilão da história contada no filme.
(- visionar trecho de ‘Era uma vez…’)

Tarkovski está tão entretido em fazer música (com o compositor Eduard Artemiev) que reduz o fluxo de imagens visuais para ceder espaço às imagens da música (por sinal, neste exemplo, uma música igualmente ferroviária..). Citação: Pergunta: ‘Existe simbolismo(ogia) em ‘Espelho’?’ Não! As imagens são, por elas mesmas, símbolos, mas diferentemente de símbolos aceitos como tal, elas não podem ser decifradas. A imagem é como um coágulo de vida, e até mesmo o autor pode não ser capaz de atingir seu significado…” [1]

(- visionar trecho de Stalker, de Tarkovski)

Estes exemplos serviram para mostrar a ausência de delimitações entre as artes, para confirmar essa riqueza da escuta, mas também ampliar nossas dúvidas.

Ruminando

Não sendo, como disse antes, afirmartiva, tampouco terá, esta reflexão, uma linha crítica ou, ao contrário e equivalente, de exaltação às novas tecnologias - se seriam elas do Bem ou do Mal – porque, pelo menos em minha vida, entraram organicamente: já estavam à disposição quando comecei a trabalhar trinta anos atrás. (O ‘trauma do novo’ me foi poupado por esforços anteriores, dos verdadeiros pioneiros). A passagem de uma música instrumental para outra feita com gravadores se processou, para mim, de maneira tão imediata quanto a troca da broca mecânica por uma ‘a jato’ no dentista. Mais tarde a tecnologia analógica da fita magnética foi substituída por conveniência material: era mais cara, ocupava mais espaço e demandava manutenção mais complicada que os computadores[2]. Se pretendesse defender – pelo uso de novas tecnologias - a modernidade, a pós-modernidade, a vanguarda ou a tradição (palavras e temas que nunca precisei invocar), já teria deixado a Eletrônica pela Química, junto da qual presumo que caberia pensar o futuro da música. Música e droga tendem a se juntar, como já claramente manifesta o sintoma repetitivo do ecstasy, complemento da música techno. Imagino que um dia se comprará, para ingestão oral, cartelas de música química. Qualquer um poderá ter sua escuta individualizada da música que preferir, ou mais do que isso, tornar-se a própria música, ser a Tati (cantora brasileira de funk) para ‘quebrar todos os barracos’. O narco-tráfico perderá para uma narco-síntese apoiada em pesquisas sobre a escuta! Parece bom-humor, mas não é: para que fins tem servido aquela música eletroacústica ‘universitária’ a que me referi? Para que(m) serve o conhecimento da escuta produzido na academia? Felizmente nosso tema ainda está em sua fase relacionada às máquinas e ao suporte eletrônico/informático.

Sinestesia

O que melhor caracteriza a produção do repertório eletroacústico não é a tecnologia e sua presença pesada em toneladas de alto-falantes, e sim o panorama aberto sobre o fenômeno da escuta. Não creio que os compositores que nos precederam tivessem o interesse pela tecnologia justificado somente pela facilitação de procedimentos de composição e realização. De menor amplitude, esta parece ser a visão de uma computer-music (a ‘cereja no topo’ da indústria de novas tecnologias, até mesmo em sua versão nativa/nanica[3]) esta vertente da música produzida nas universidades que se pendura em uma legitimidade oferecida pela vizinhança com as pesquisas sobre aplicações de software e hardware. Não; estou falando do que importava de verdade, isto é: para o ouvinte da música. Esta nova entrada para o conhecimento, iniciada por Pierre Schaeffer, seguido de perto por François Bayle, Denis Smalley, Trevor Wishart, Michel Chion e outros, ocupados com a busca de um entendimento mais extensivo da nossa relação com o mundo sonoro e especificamente com a música que escutamos.

A questão mais importante nesse campo, na minha opinião, foi colocada pelos ouvintes a partir do momento em que se encontraram diante de obras empregando sons anteriormente considerados ‘não-musicais’. A escuta de sons ‘não-musicais’ nas obras de Cage em 1939[4] provocou a pergunta: ‘_Mas isto é música?’ Ou: ‘_É verdade, por que esses sons não poderiam ser ouvidos como música?’ O que eu considero uma re-visitação de questões mais comumente discutidas no âmbito das Artes Plásticas, um efeito de ressonância do urinol de Marcel Duchamp, uma pergunta de direito, pela legitimidade. Porém aquele trem no ‘Concerto de Ruídos’ de Schaeffer, em 1948 fez os ouvintes perguntarem: ‘o que é que (me) faz (alguém) estar ouvindo isso como música?’ Uma pergunta pelo fato. Gostaria de apoiar esta leitura propondo a escuta de ‘Tinnitus’, uma peça acusmática[5] que explora os limites entre esses dois pólos: o ‘musical’ e o ‘sonoro’, e apresenta de maneira voluntariamente explorada algo que discutirei em seguida: o espaço.

(- escutar ‘Tinnitus’)

Não é por acaso que na busca pelo entendimento da escuta a maior parte da terminologia criada pelos compositores-pesquisadores evita neologismos optando por palavras do vernáculo: se o esforço de verbalizar é no sentido da elucidação, então seria um contra-senso inventar termos que, para serem por sua vez explicados, teriam que sê-lo (novamente ao som do vernáculo...).
Talvez por esse motivo, os termos encontrados tantas vezes resvalam para o campo da sinestesia. Alguns exemplos visuais: flocking motion (movimento em rebanho), canopy (conjunto feito pelas copas de árvoses, copagem), gesto, textura, rugosidade, espessura (em sinestesia com a visão), fazendo a ponte com exemplos táteis: pesado, agudo, rugosidade, granulosidade, aspereza, etc…
Observa-se assim que o esforço para chamar a atenção sobre características não-referenciais dos sons, a escuta reduzida de Schaeffer (e seus desdobramentos, especialmente em Smalley), termina encontrando referenciais em outros sentidos. A busca de uma linguagem para descrever os sons encontra palavras anteriormente dedicadas à descrição de experiências pertencentes a outros sentidos. (Não que as palavras em questão ‘pertençam’ a esses sentidos, apenas foram usadas antes, ou mais extensivamente, na descrição de experiências deles!). Isso corrobora a afirmação de Michel Chion na quarta-feira: a de que a separação em cinco sentidos tem mais fundamentos ideológicos do que factuais. Que os sentidos estão bem mais misturados que a lógica determinada pelos buracos da nossa cabeça. Chamo a atenção para o poder de evocação - de um sentido por outro - ainda mais complexo. Um caso espetacular vamos encontrar no conhecido samba de Noel Rosa, na referência a um apito de fábrica. Mesmo sem uma representação sonora do apito realizado na música (uma flauta, p.ex.), a canção não apenas nos faz ‘ver’ a fábrica, como também nos deixa adentrar esta visão para entreouvir seu sinal sonoro. Então: um som é escutado sem estar ali, por associação com uma imagem visual deflagrada por uma palavra cantada na música. Continuando no texto da canção, esse som deflagra no cantor/autor uma lembrança, da amada… O ouvinte poderia ainda se perguntar em que estaria ela pensando, se ela de fato corresponde ao interesse dele, enfim… temos quatro, cinco envios de uma só vez!

O que mais escutamos

Estou chegando ao ponto central desta fala. Então é consenso: a música eletroacústica abriu a música para o som ‘não-musical’, ou melhor, dissolveu o limite rígido entre um universo ‘musical’ e um outro ‘sonoro’. Entretanto ela pode também mostrar uma complexidade perceptual muito mais difícil de assumir, na qual ‘perdemos de vista’ a diferença entre som e figura, entre imagem visual e estímulo tátil, entre música e cheiro. Seria difícil misturar música de sons e culinária, porque acredito que cada qual tem suas especificidades. A de jogar com a referencialidade e os constantes envios à fonte[6] é bem mais da ordem do sonoro/musical que da ordem do paladar, por exemplo. O sentido do gosto é igualmente imaginativo, e também emprega palavras de outra ordem, quase sempre em sinestesia com o sentido do olfato. Mas se contenta com a adjetivação: sabor frutado, almiscarado, etc. Diferentemente da música, ninguém come uma torta traçando de volta as referências do creme chantilly, o que é defensivamente vantajoso, pois no fim do percurso entre o sinal e a referência o ouvinte encontraria em lugar das vacas leiteiras um campo de soja ou algum produto sintético. Mas ainda assim muita mistura de som com ‘não-som’ pode ser feita dentro do âmbito da experiência musical. Para introduzir ao exemplo principal, a seguir, precisarei entrar outra vez no campo da experiência pessoal.

Uma vez, durante uma semana de férias em um lugar perto de Belo Horizonte, minha filha se machucou batendo com o rosto na borda da piscina. Incidente banal, não fosse por aquele arrepio que se sente quando essas situações nos alertam sobre a fragilidade e a precariedade. Nesse dia eu devo ter ficado pensando demais sobre o assunto, porque no meio da noite tive um pesadelo. O sonho era ao mesmo tempo espacial, gráfico, devido à clareza da cena composta, como era temporal, pela iminência de um processo anunciado por um som.

Passeava pelo leito seco de um riacho daquela região quando vi, na parte inferior de uma das margens, dentro de uma gruta formada pelo vão de uma pedra achatada, os pés de três ou quatro crianças que se divertiam por terem se enfiado ali. Elas estavam completamente presas, e somente conseguiriam sair recuando lentamente, talvez uma de cada vez. A graça da brincadeira era gozar da falta de espaço, era estar naquela situação inusitada de ficar dentro, rindo, em grupo, contido, conteúdo subjugado por toda a força e o peso de um barranco. Fez-me lembrar da minha infáncia e especialmente quando, durante a construção do bairro em que vivia, apreciava a sensação de perigo atravessando as ruas novas debaixo da terra, arrastando-me pelas manilhas da rede pluvial. A graça era a exigüidade, a falta de amplitude, de horizonte, de ar, e o perigo de estar ali.

Para transformar a cena do sonho em horror bastava um som, justamente aquele que eu escutei no sonho, que era o de uma tromba d’água se aproximando: o leito do rio em um instante estaria cheio até as bordas, sem dar tempo para que as crianças saíssem do buraco.  A partir desse pesadelo comecei a pensar sobre a falta de espaço, a claustrofobia, e outras faces do medo. Como assim? Por que? Para que falar disso em uma palestra sobre música? O que tem a vida pessoal com o interesse acadêmico pela música eletroacústica?

Tudo junto

Acredito que as coisas sejam mais difíceis de separar em classes e categorias, e como sintoma disso desde o início propus um percurso cruzando a composição e a pesquisa. Para continuar nele, experiência pessoal e conceito também se misturam. Nessa confusão, até a intimidade se viu implicada. Para continuar nesse caminho, recorro a um fragmento de Nietzsche:

'O ouvido, este órgão do medo, alcançou tanta grandeza na noite e na penumbra de cavernas obscuras e florestas, bem de acordo com o modo de viver da era do receio'...'Na claridade do dia o ouvido é menos necessário. Foi assim que a música adquiriu o caráter de arte da noite e da penumbra.' (Nietzsche: Aurora)[7].

Achei que poderia tentar identificar pelo menos uma das faces do medo tomando como ponto de partida a música, num sentido inverso das terminologias sinestésicas. Em vez de explicar a música por meio de palavras pertencentes a outras experiências, gostaria de ser capaz de descrever uma emoção através de palavras da música Ou, se não der, ao menos usar palavras que pertençam a ela tanto quanto a qualquer outra instância do mundo empírico, sem ordem de precedência. Ocorreu-me que o espaço e o tempo, essas categorias que estão em tudo - e de modo condicional e necessário na música - presidiriam a diferentes emoções. A angústia depende mais do espaço, o que até revela uma etimologia no radical ‘eng’, estreito, da palavra alemã ‘Angst’. Angústia, entendida por este ângulo musical (e eis aqui outra sinestesia!) fica sendo o medo associado ao desconforto espacial, esse que aperta o coração. Ansiedade, em contraposição associa-se mais com o tempo. Ansiedade será a temporalização da angústia; nessa inversão - o medo de jamais ter o desconforto aliviado, ou pior ainda, tê-lo aumentado ao longo do tempo, ou ter que esperar mais - aumentando o estado de angústia por re-alimentação. Angústia de ver aqueles pés inocentes, e ansiedade com a iminência da desgraça.

Esta indagação não visa explicar por que algumas músicas causariam medo e outras não, porque o interesse aqui não é o medo concreto, embora o tenha experimentado. O que interessa é de ordem conceitual: a mera associação entre ordens empíricas diversas: uma emoção e o sentido da audição[8]. Preciso chamar a atenção: ouvir música não é necessariamente expor-se ao medo. Talvez livrar-se dele, como parece sugerir Nietzsche. E este não é um texto de Musicoterapia. Somente pretendi observar que ‘espaço’ parece o elemento necessário para o sofrimento da angústia assim como é básico para a escuta da música, e absolutamente importante para a escuta de música eletroacústica. Não creio que a música escutada há pouco tenha gerado qualquer medo nos ouvintes. (Se aconteceu, não foi intencional!).

Espaço, portanto, é uma ‘figura’ reclamada pela música eletroacústica, conforme se ouviu na peça. Os alto-falantes espalhados pela sala confirmam o desejo de sua exploração criteriosa. Mas o espaço na música não existe por si, como som. O espaço é um não-som que acaba ‘soando’, resultado da colocação de figuras sonoro/musicais em determinados planos e panorâmicas, com ou sem movimentação e reverberações justificadas. O espaço parece ser o suporte das figuras, mas na verdade resulta da manifestação delas. Na escuta não existe um espaço previamente vazio que preencheremos com nossos personagens. Quando se manifestam à escuta, os personagens demarcam o espaço que os contém. Na música o espaço não é representado, mas apresentado. E ele não representa, nem se representa, nem refere a nada, simplesmente existe no tempo da música. Você aumenta o volume geral e imediatamente todos os personagens ficam mais ‘presentes’. Mas o espaço permanece o mesmo. Então esta é uma música que opera com não-sons, com estímulos de uma outra ordem que nem mesmo sonoros são?

Antes de terminar, gostaria de ‘tocar’ uma pequena peça para sons gravados e projeção multimídia. A palavra ‘tocar’ deve ser aspada para significar meu desconforto com sua categorização: ‘performaticamente’ esta peça é mais problemática do que as músicas acusmáticas, cujo dispositivo de difusão introduz o anacronismo do ‘intérprete’. Refiro-me à atuação performática do ‘difusor’, herança da decisão de Pierre Schaeffer de passar do ambiente radiofônico para o das salas de concerto. 
Peças como ‘Clips’ aprofundam a condição anfíbia mencionada no início. É uma música com aspirações cinematográficas. Seu formato talvez venha a estimular a substituição do intérprete pela do projecionista. Entretanto é uma peça de cunho musical, mesmo ou principalmente nos momentos em que nada se ouve com os ouvidos, mas se escuta com a imaginação.

(- escutar/ver ‘Clips’)

Conclusão

Então o tímpano é uma tela? Mais que isto, é principalmente uma pele. Por esse motivo não seria somente por intermédio dele que sentimos os sons, porque todo o corpo tem pele prestando-se à recepção. Mas é também uma pele que não recebe apenas imagens sonoras.

Este texto foi estimulado pela pergunta de uma amiga alertando contra uma retomada do projeto wagneriano que, suspeita ela, permearia o discurso da chamada ‘multimídia’. Em resposta, resumindo, manifestei desconhecer uma unidade ‘estética’ dentre a produção que se enquadra nesta categoria (multimídia), que terá dificuldade para construir um discurso seu. Tentei há pouco descrever que não são os diferentes suportes que se conjugam, mas sim os sentidos; e que, seguindo nessa via iniciada a partir da experiência eletroacústica - esta celebração da escuta - se pode chegar a extremos em que o próprio som é abolido.
No lugar da hegemonia de uma linguagem sobre outras - a música sobre a poesia, a visualidade e o teatro (no caso de Wagner), estamos ainda em estado de perplexidade diante da multi-sensorialidade, que eu espero se prolongue o quanto puder antes que sobrevenha o bafo congelante de projetos estéticos em seus pacotes fechados. Essa perplexidade, enriquecedora, já manifesta um desconforto ao ver a música eletroacústica engessando seu destino entre as paredes anacrônicas da sala de concerto - re-legitimada por sistemas de alto-falantes. Aquela arte nascida no rádio, que buscou o concerto para melhor provocar a música, desmerece sua origem ao se deixar ‘classicizar’ em frente ao palco italiano, tal como se encontra agora, confortavelmente sustentada por discursos acadêmicos e/ou tecnocientíficos.
Entretanto ainda parece restar espaço para apostas em um destino extra-acusmático da musique concrète, resultado de uma ampliação conseqüente pela via iniciada com a escuta reduzida. Essa é uma abertura para situações de perigo, tal e qual o corrido por quem entra em manilhas.





[1] Andrey Tarkovsky, in Time within time, The Diaries 1970-1986, Seagull Books, Calcutá 1991.
[2] Não posso negar que, com a informatizacão, fui esteticamente afetado quando passei a adotar estratégias exteriores às da música concreta, incorporando artifícios de uma composição planejada - mas isso seria assunto para outra fala.
[3] Esta produção nacional ainda vacilante entre traduzir ‘computer-music’ por (para se chamar) ‘computação musical’ oumúsica computacional’.
[4] E desde então seremos sempre, por insegurança, obrigados a aspar esse termo e seuoposto’: ‘musical’. Ou aindasomem oposição a ‘música’.
[5] Feita para ser escutada em situação acusmática, isto é, através de alto-falantes, portanto sem ligação visual com as fontes originais dos sons.
[6] Hábito de tentarmos associar ao ‘somsua origem, fonte, instrumento, enfim, a ‘causa’.
[7] 'Nacht und Musik - das Ohr, das Organ der Furcht, hat sich nur in der Nacht und in der Halbnacht dunkler Wälder und Höhlen so reich entwickeln koennen, wie essich entwickelt hat, gemaess der Lebensweise des Furchtsamen, das heisst, des allerlängsten menschlischen Zeitalter, welches es gegeben hat: im Hellen ist das Ohr weniger nöthig. daher der Charakter der Musik, als einer Kunst der Nacht und Halbnacht.' Morgenröth, (1881), aforisma 250. Gesamte Aufgabe, Coli-Molinari, vol. v, 1982. p.116.
[8] Muito embora, na minha opinião, seja difícil (pelo mesmo motivo que me obriga ao uso de aspas) estabelecer uma diferença entreaudição’, para falar de um dos cinco sentidos, e ‘escuta’, essa recepção/entendimento ‘sonoro-musical’…