Rodolfo Caesar - rcaesar@terra.com.nr
Escola de Música - UFRJ
Resumo: Os constantes avanços tecnológicos oferecem aos artistas quantidade crescente de ferramentas, facilitando acesso a diferentes frentes de produção. Uma recente categoria, a arte multimídia, parece, em sua hegemônica presença, balançar divisões genéricas estabelecidas há séculos. Haveria perigo para a música? A arte multimídia teria saudades da obra de arte total de Wagner? Ainda despontam algumas questões terminológicas.
[8] Muito embora, na minha opinião, seja difícil (pelo mesmo motivo que me obriga ao uso de aspas) estabelecer uma diferença entre ‘audição’, para falar de um dos cinco sentidos, e ‘escuta’, essa recepção/entendimento ‘sonoro-musical’…
As perguntas
O título do texto não importa muito pelas palavras que associa, mas pelo ponto de interrogação terminando a frase. Sem teor afirmartivo, manifesta bem mais um estado de perplexidade - testemunho da condição anfíbia de pesquisador e compositor. Por esta razão parecerá muito mais um depoimento pessoal que um relato de pesquisa claro, metódico e objetivamente exposto. Muito embora seja, sim, resultado de pesquisa, porque sem ela as dúvidas nem teriam surgido. Trata da busca de um compositor envolvido com a música eletroacústica, portanto interessado na escuta. Nesta condição, e tendo um objeto de indagação tão complexo, quanto mais o compositor pesquisa e faz música, mais encontra becos sem saída em lugar de certezas. Anfíbia, também, é a condição da própria espécie em questão - a música eletroacústica - que nasceu nas ondas do rádio, instalou-se pouco adequadamente no palco italiano de salas de concerto, e não consegue represar sua vocação cinematográfica. Não sendo radiofonia, e nem cinema, projeta-se anacronicamente (‘anatopicamente’ também?) como e aonde puder. Trata-se, portanto, de uma arte em ‘estado de por-fazer’, seus criadores tendo a ganhar se reconhecessem sua condição de inacabamento, sendo justamente essa inadequação o que garante parte de sua riqueza.
Para iniciar este desfiar de dúvidas e paradoxos, gostaria de apresentar alguns trechos: uma pequena peça de Pierre Schaeffer, um trecho de Luc Ferrari, um trecho de ‘Era uma vez no oeste’, filme de Sergio Leone, e outro de ‘Stalker’, filme de Tarkovski.
(- escutar Étude Pathétique de 2’45 até’ o fim.)
Este ‘Étude Pathétique’, de 1948, é exemplar da primeira fase de Schaeffer, a mais rica, porque fertilizava já naquela época o que está centralmente tematizado neste texto: a abrangência da escuta. Nas obras posteriores de Schaeffer não ouviremos mais, por exemplo a sobreposição, em simultaneidade, de três tipos de escuta: uma ‘musical’ segundo o senso comum (arpeggio de notas de piano), uma indicial, de sons referenciais nos loops (de sons vocálicos identificáveis) e a ‘concreta-reduzida’ (da estrada de ferro passando por filtragem).
Entretanto a ‘referencialidade’ vinha sendo desestimulada entre os membros do Club d’Essai, do Groupe de Musique Concrète e do primeiro Groupe de Recherches Musicales, até 1963/64, quando Luc Ferrari inaugurou a ‘musique anecdotique’ com ‘Hétérozygote’.
(- escutar ‘Presque Rien I’ – parte 3 )
O exemplo escolhido é de ‘Presque Rien’, de 1971, obra em que nem o gesto da montagem é sentido. A referencialidade de Ferrari na verdade é sustentada por uma escuta reduzida segundo o gosto schaefferiano, mas abre o espectro da experiência musical para a imaginação de outros sentidos. A imagem visual, cinematográfica é obviamente a primeira vizinha. No entanto, além das imagens visuais, um certo calor de verão pode ser inferido pela cena. Pelo aumento de volume (amplitude) dos sons de insetos o autor de certa maneira precipita uma sensação de calor, atingindo assim o sentido tátil térmico.
Em caminho inverso ao da música concreta ‘excludente’ da referência, o cinema, por ex. o de Sergio Leone, re-dimensiona a importância não somente da música incidental mas dos ‘sons incidentais’ (com insetos idênticos aos da música de Ferrari!). Diz-se que as filmagens decorriam enquanto o compositor da trilha (Ennio Morricone) executava ao vivo (piano?) as músicas das cenas. Isto explicaria a marcha bailada dos bandidos na cena mostrada a seguir (‘Era uma vez no oeste’, 1968), que mais de um crítico confundiu como uma re-invenção da ópera - esta re-organização dos papéis das imagens sonoro-musicais e visuais. Mas é mais do que isto: é uma outra forma. Não é só a ‘música’ que adquire nova importância e papel neste filme. Sem falar dos quinze minutos do início do filme, todo construído com ruídos ambientes, a seqüência a seguir já tem elementos suficientes para exemplificar uma seção ‘conduzida’ pela música. Os sons de cordas ‘sul tasto’ se assemelham a sons ferroviários, e o barulho do tiro final se mistura ao apito de um trem, denunciando-o como o verdadeiro vilão da história contada no filme.
(- visionar trecho de ‘Era uma vez…’)
Tarkovski está tão entretido em fazer música (com o compositor Eduard Artemiev) que reduz o fluxo de imagens visuais para ceder espaço às imagens da música (por sinal, neste exemplo, uma música igualmente ferroviária..). Citação: “Pergunta: ‘Existe simbolismo(ogia) em ‘Espelho’?’ Não! As imagens são, por elas mesmas, símbolos, mas diferentemente de símbolos aceitos como tal, elas não podem ser decifradas. A imagem é como um coágulo de vida, e até mesmo o autor pode não ser capaz de atingir seu significado…” [1]
(- visionar trecho de Stalker, de Tarkovski)
Estes exemplos serviram para mostrar a ausência de delimitações entre as artes, para confirmar essa riqueza da escuta, mas também ampliar nossas dúvidas.
Ruminando
Não sendo, como disse antes, afirmartiva, tampouco terá, esta reflexão, uma linha crítica ou, ao contrário e equivalente, de exaltação às novas tecnologias - se seriam elas do Bem ou do Mal – porque, pelo menos em minha vida, entraram organicamente: já estavam à disposição quando comecei a trabalhar trinta anos atrás. (O ‘trauma do novo’ me foi poupado por esforços anteriores, dos verdadeiros pioneiros). A passagem de uma música instrumental para outra feita com gravadores se processou, para mim, de maneira tão imediata quanto a troca da broca mecânica por uma ‘a jato’ no dentista. Mais tarde a tecnologia analógica da fita magnética foi substituída por conveniência material: era mais cara, ocupava mais espaço e demandava manutenção mais complicada que os computadores[2]. Se pretendesse defender – pelo uso de novas tecnologias - a modernidade, a pós-modernidade, a vanguarda ou a tradição (palavras e temas que nunca precisei invocar), já teria deixado a Eletrônica pela Química, junto da qual presumo que caberia pensar o futuro da música. Música e droga tendem a se juntar, como já claramente manifesta o sintoma repetitivo do ecstasy, complemento da música techno. Imagino que um dia se comprará, para ingestão oral, cartelas de música química. Qualquer um poderá ter sua escuta individualizada da música que preferir, ou mais do que isso, tornar-se a própria música, ser a Tati (cantora brasileira de funk) para ‘quebrar todos os barracos’. O narco-tráfico perderá para uma narco-síntese apoiada em pesquisas sobre a escuta! Parece bom-humor, mas não é: para que fins tem servido aquela música eletroacústica ‘universitária’ a que me referi? Para que(m) serve o conhecimento da escuta produzido na academia? Felizmente nosso tema ainda está em sua fase relacionada às máquinas e ao suporte eletrônico/informático.
Sinestesia
O que melhor caracteriza a produção do repertório eletroacústico não é a tecnologia e sua presença pesada em toneladas de alto-falantes, e sim o panorama aberto sobre o fenômeno da escuta. Não creio que os compositores que nos precederam tivessem o interesse pela tecnologia justificado somente pela facilitação de procedimentos de composição e realização. De menor amplitude, esta parece ser a visão de uma computer-music (a ‘cereja no topo’ da indústria de novas tecnologias, até mesmo em sua versão nativa/nanica[3]) esta vertente da música produzida nas universidades que se pendura em uma legitimidade oferecida pela vizinhança com as pesquisas sobre aplicações de software e hardware. Não; estou falando do que importava de verdade, isto é: para o ouvinte da música. Esta nova entrada para o conhecimento, iniciada por Pierre Schaeffer, seguido de perto por François Bayle, Denis Smalley, Trevor Wishart, Michel Chion e outros, ocupados com a busca de um entendimento mais extensivo da nossa relação com o mundo sonoro e especificamente com a música que escutamos.
A questão mais importante nesse campo, na minha opinião, foi colocada pelos ouvintes a partir do momento em que se encontraram diante de obras empregando sons anteriormente considerados ‘não-musicais’. A escuta de sons ‘não-musicais’ nas obras de Cage em 1939[4] provocou a pergunta: ‘_Mas isto é música?’ Ou: ‘_É verdade, por que esses sons não poderiam ser ouvidos como música?’ O que eu considero uma re-visitação de questões mais comumente discutidas no âmbito das Artes Plásticas, um efeito de ressonância do urinol de Marcel Duchamp, uma pergunta de direito, pela legitimidade. Porém aquele trem no ‘Concerto de Ruídos’ de Schaeffer, em 1948 fez os ouvintes perguntarem: ‘o que é que (me) faz (alguém) estar ouvindo isso como música?’ Uma pergunta pelo fato. Gostaria de apoiar esta leitura propondo a escuta de ‘Tinnitus’, uma peça acusmática[5] que explora os limites entre esses dois pólos: o ‘musical’ e o ‘sonoro’, e apresenta de maneira voluntariamente explorada algo que discutirei em seguida: o espaço.
(- escutar ‘Tinnitus’)
Não é por acaso que na busca pelo entendimento da escuta a maior parte da terminologia criada pelos compositores-pesquisadores evita neologismos optando por palavras do vernáculo: se o esforço de verbalizar é no sentido da elucidação, então seria um contra-senso inventar termos que, para serem por sua vez explicados, teriam que sê-lo (novamente ao som do vernáculo...).
Talvez por esse motivo, os termos encontrados tantas vezes resvalam para o campo da sinestesia. Alguns exemplos visuais: flocking motion (movimento em rebanho), canopy (conjunto feito pelas copas de árvoses, copagem), gesto, textura, rugosidade, espessura (em sinestesia com a visão), fazendo a ponte com exemplos táteis: pesado, agudo, rugosidade, granulosidade, aspereza, etc…
Observa-se assim que o esforço para chamar a atenção sobre características não-referenciais dos sons, a escuta reduzida de Schaeffer (e seus desdobramentos, especialmente em Smalley), termina encontrando referenciais em outros sentidos. A busca de uma linguagem para descrever os sons encontra palavras anteriormente dedicadas à descrição de experiências pertencentes a outros sentidos. (Não que as palavras em questão ‘pertençam’ a esses sentidos, apenas foram usadas antes, ou mais extensivamente, na descrição de experiências deles!). Isso corrobora a afirmação de Michel Chion na quarta-feira: a de que a separação em cinco sentidos tem mais fundamentos ideológicos do que factuais. Que os sentidos estão bem mais misturados que a lógica determinada pelos buracos da nossa cabeça. Chamo a atenção para o poder de evocação - de um sentido por outro - ainda mais complexo. Um caso espetacular vamos encontrar no conhecido samba de Noel Rosa, na referência a um apito de fábrica. Mesmo sem uma representação sonora do apito realizado na música (uma flauta, p.ex.), a canção não apenas nos faz ‘ver’ a fábrica, como também nos deixa adentrar esta visão para entreouvir seu sinal sonoro. Então: um som é escutado sem estar ali, por associação com uma imagem visual deflagrada por uma palavra cantada na música. Continuando no texto da canção, esse som deflagra no cantor/autor uma lembrança, da amada… O ouvinte poderia ainda se perguntar em que estaria ela pensando, se ela de fato corresponde ao interesse dele, enfim… temos quatro, cinco envios de uma só vez!
O que mais escutamos
Estou chegando ao ponto central desta fala. Então é consenso: a música eletroacústica abriu a música para o som ‘não-musical’, ou melhor, dissolveu o limite rígido entre um universo ‘musical’ e um outro ‘sonoro’. Entretanto ela pode também mostrar uma complexidade perceptual muito mais difícil de assumir, na qual ‘perdemos de vista’ a diferença entre som e figura, entre imagem visual e estímulo tátil, entre música e cheiro. Seria difícil misturar música de sons e culinária, porque acredito que cada qual tem suas especificidades. A de jogar com a referencialidade e os constantes envios à fonte[6] é bem mais da ordem do sonoro/musical que da ordem do paladar, por exemplo. O sentido do gosto é igualmente imaginativo, e também emprega palavras de outra ordem, quase sempre em sinestesia com o sentido do olfato. Mas se contenta com a adjetivação: sabor frutado, almiscarado, etc. Diferentemente da música, ninguém come uma torta traçando de volta as referências do creme chantilly, o que é defensivamente vantajoso, pois no fim do percurso entre o sinal e a referência o ouvinte encontraria em lugar das vacas leiteiras um campo de soja ou algum produto sintético. Mas ainda assim muita mistura de som com ‘não-som’ pode ser feita dentro do âmbito da experiência musical. Para introduzir ao exemplo principal, a seguir, precisarei entrar outra vez no campo da experiência pessoal.
Uma vez, durante uma semana de férias em um lugar perto de Belo Horizonte, minha filha se machucou batendo com o rosto na borda da piscina. Incidente banal, não fosse por aquele arrepio que se sente quando essas situações nos alertam sobre a fragilidade e a precariedade. Nesse dia eu devo ter ficado pensando demais sobre o assunto, porque no meio da noite tive um pesadelo. O sonho era ao mesmo tempo espacial, gráfico, devido à clareza da cena composta, como era temporal, pela iminência de um processo anunciado por um som.
Passeava pelo leito seco de um riacho daquela região quando vi, na parte inferior de uma das margens, dentro de uma gruta formada pelo vão de uma pedra achatada, os pés de três ou quatro crianças que se divertiam por terem se enfiado ali. Elas estavam completamente presas, e somente conseguiriam sair recuando lentamente, talvez uma de cada vez. A graça da brincadeira era gozar da falta de espaço, era estar naquela situação inusitada de ficar lá dentro, rindo, em grupo, contido, conteúdo subjugado por toda a força e o peso de um barranco. Fez-me lembrar da minha infáncia e especialmente quando, durante a construção do bairro em que vivia, apreciava a sensação de perigo atravessando as ruas novas debaixo da terra, arrastando-me pelas manilhas da rede pluvial. A graça era a exigüidade, a falta de amplitude, de horizonte, de ar, e o perigo de estar ali.
Para transformar a cena do sonho em horror bastava um som, justamente aquele que eu escutei no sonho, que era o de uma tromba d’água se aproximando: o leito do rio em um instante estaria cheio até as bordas, sem dar tempo para que as crianças saíssem do buraco. A partir desse pesadelo comecei a pensar sobre a falta de espaço, a claustrofobia, e outras faces do medo. Como assim? Por que? Para que falar disso em uma palestra sobre música? O que tem a vida pessoal com o interesse acadêmico pela música eletroacústica?
Tudo junto
Acredito que as coisas sejam mais difíceis de separar em classes e categorias, e como sintoma disso desde o início propus um percurso cruzando a composição e a pesquisa. Para continuar nele, experiência pessoal e conceito também se misturam. Nessa confusão, até a intimidade se viu implicada. Para continuar nesse caminho, recorro a um fragmento de Nietzsche:
'O ouvido, este órgão do medo, só alcançou tanta grandeza na noite e na penumbra de cavernas obscuras e florestas, bem de acordo com o modo de viver da era do receio'...'Na claridade do dia o ouvido é menos necessário. Foi assim que a música adquiriu o caráter de arte da noite e da penumbra.' (Nietzsche: Aurora)[7].
Achei que poderia tentar identificar pelo menos uma das faces do medo tomando como ponto de partida a música, num sentido inverso das terminologias sinestésicas. Em vez de explicar a música por meio de palavras pertencentes a outras experiências, gostaria de ser capaz de descrever uma emoção através de palavras da música Ou, se não der, ao menos usar palavras que pertençam a ela tanto quanto a qualquer outra instância do mundo empírico, sem ordem de precedência. Ocorreu-me que o espaço e o tempo, essas categorias que estão em tudo - e de modo condicional e necessário na música - presidiriam a diferentes emoções. A angústia depende mais do espaço, o que até revela uma etimologia no radical ‘eng’, estreito, da palavra alemã ‘Angst’. Angústia, entendida por este ângulo musical (e eis aqui outra sinestesia!) fica sendo o medo associado ao desconforto espacial, esse que aperta o coração. Ansiedade, em contraposição associa-se mais com o tempo. Ansiedade será a temporalização da angústia; nessa inversão - o medo de jamais ter o desconforto aliviado, ou pior ainda, tê-lo aumentado ao longo do tempo, ou ter que esperar mais - aumentando o estado de angústia por re-alimentação. Angústia de ver aqueles pés inocentes, e ansiedade com a iminência da desgraça.
Esta indagação não visa explicar por que algumas músicas causariam medo e outras não, porque o interesse aqui não é o medo concreto, embora o tenha experimentado. O que interessa é de ordem conceitual: a mera associação entre ordens empíricas diversas: uma emoção e o sentido da audição[8]. Preciso chamar a atenção: ouvir música não é necessariamente expor-se ao medo. Talvez livrar-se dele, como parece sugerir Nietzsche. E este não é um texto de Musicoterapia. Somente pretendi observar que ‘espaço’ parece o elemento necessário para o sofrimento da angústia assim como é básico para a escuta da música, e absolutamente importante para a escuta de música eletroacústica. Não creio que a música escutada há pouco tenha gerado qualquer medo nos ouvintes. (Se aconteceu, não foi intencional!).
Espaço, portanto, é uma ‘figura’ reclamada pela música eletroacústica, conforme se ouviu na peça. Os alto-falantes espalhados pela sala confirmam o desejo de sua exploração criteriosa. Mas o espaço na música não existe por si, como som. O espaço é um não-som que acaba ‘soando’, resultado da colocação de figuras sonoro/musicais em determinados planos e panorâmicas, com ou sem movimentação e reverberações justificadas. O espaço parece ser o suporte das figuras, mas na verdade resulta da manifestação delas. Na escuta não existe um espaço previamente vazio que preencheremos com nossos personagens. Quando se manifestam à escuta, os personagens demarcam o espaço que os contém. Na música o espaço não é representado, mas apresentado. E ele não representa, nem se representa, nem refere a nada, simplesmente existe no tempo da música. Você aumenta o volume geral e imediatamente todos os personagens ficam mais ‘presentes’. Mas o espaço permanece o mesmo. Então esta é uma música que opera com não-sons, com estímulos de uma outra ordem que nem mesmo sonoros são?
Antes de terminar, gostaria de ‘tocar’ uma pequena peça para sons gravados e projeção multimídia. A palavra ‘tocar’ deve ser aspada para significar meu desconforto com sua categorização: ‘performaticamente’ esta peça é mais problemática do que as músicas acusmáticas, cujo dispositivo de difusão introduz o anacronismo do ‘intérprete’. Refiro-me à atuação performática do ‘difusor’, herança da decisão de Pierre Schaeffer de passar do ambiente radiofônico para o das salas de concerto.
Peças como ‘Clips’ aprofundam a condição anfíbia mencionada no início. É uma música com aspirações cinematográficas. Seu formato talvez venha a estimular a substituição do intérprete pela do projecionista. Entretanto é uma peça de cunho musical, mesmo ou principalmente nos momentos em que nada se ouve com os ouvidos, mas se escuta com a imaginação.
(- escutar/ver ‘Clips’)
Conclusão
Então o tímpano é uma tela? Mais que isto, é principalmente uma pele. Por esse motivo não seria somente por intermédio dele que sentimos os sons, porque todo o corpo tem pele prestando-se à recepção. Mas é também uma pele que não recebe apenas imagens sonoras.
Este texto foi estimulado pela pergunta de uma amiga alertando contra uma retomada do projeto wagneriano que, suspeita ela, permearia o discurso da chamada ‘multimídia’. Em resposta, resumindo, manifestei desconhecer uma unidade ‘estética’ dentre a produção que se enquadra nesta categoria (multimídia), que terá dificuldade para construir um discurso seu. Tentei há pouco descrever que não são os diferentes suportes que se conjugam, mas sim os sentidos; e que, seguindo nessa via iniciada a partir da experiência eletroacústica - esta celebração da escuta - se pode chegar a extremos em que o próprio som é abolido.
No lugar da hegemonia de uma linguagem sobre outras - a música sobre a poesia, a visualidade e o teatro (no caso de Wagner), estamos ainda em estado de perplexidade diante da multi-sensorialidade, que eu espero se prolongue o quanto puder antes que sobrevenha o bafo congelante de projetos estéticos em seus pacotes fechados. Essa perplexidade, enriquecedora, já manifesta um desconforto ao ver a música eletroacústica engessando seu destino entre as paredes anacrônicas da sala de concerto - re-legitimada por sistemas de alto-falantes. Aquela arte nascida no rádio, que buscou o concerto para melhor provocar a música, desmerece sua origem ao se deixar ‘classicizar’ em frente ao palco italiano, tal como se encontra agora, confortavelmente sustentada por discursos acadêmicos e/ou tecnocientíficos.
Entretanto ainda parece restar espaço para apostas em um destino extra-acusmático da musique concrète, resultado de uma ampliação conseqüente pela via iniciada com a escuta reduzida. Essa é uma abertura para situações de perigo, tal e qual o corrido por quem entra em manilhas.
[2] Não posso negar que, com a informatizacão, fui esteticamente afetado quando passei a adotar estratégias exteriores às da música concreta, incorporando artifícios de uma composição planejada - mas isso seria assunto para outra fala.
[3] Esta produção nacional ainda vacilante entre traduzir ‘computer-music’ por (para se chamar) ‘computação musical’ ou ‘música computacional’.
[4] E desde então seremos sempre, por insegurança, obrigados a aspar esse termo e seu ‘oposto’: ‘musical’. Ou ainda ‘som’ em oposição a ‘música’.
[5] Feita para ser escutada em situação acusmática, isto é, através de alto-falantes, portanto sem ligação visual com as fontes originais dos sons.
[7] 'Nacht und Musik - das Ohr, das Organ der Furcht, hat sich nur in der Nacht und in der Halbnacht dunkler Wälder und Höhlen so reich entwickeln koennen, wie essich entwickelt hat, gemaess der Lebensweise des Furchtsamen, das heisst, des allerlängsten menschlischen Zeitalter, welches es gegeben hat: im Hellen ist das Ohr weniger nöthig. daher der Charakter der Musik, als einer Kunst der Nacht und Halbnacht.' Morgenröth, (1881), aforisma 250. Gesamte Aufgabe, Coli-Molinari, vol. v, 1982. p.116.
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